“Nos aquíferos é que se encontra reservada a maior
parte da água do mundo — 97% das águas doces e líquidas do planeta. Quando
vemos problemas de estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas,
podemos supor que é no recurso subterrâneo que está a possibilidade de
superação”, destaca o hidrogeólogo Ricardo Hirata.
“O usuário não tem ideia dos custos de extração das
águas e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de controle afetam a sua
extração. Ele está pagando mais pela água sem saber que muitas vezes é a
irregularidade dos poços do seu vizinho que está provocando esse incremento de
gastos. Isso ocorre também com grandes usuários, incluindo as companhias
municipais de água. É um conflito não percebido pela população, que não tem
ideia de causa e efeito nesse ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas
vezes uma percepção bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas
urbanas. As empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam
economizar muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem implementadas
em suas captações”, aponta o hidrogeólogo Ricardo Hirata.
O pesquisador lidera o Centro de Pesquisas de Água
Subterrânea – CEPAS, instituição vinculada à Universidade de São Paulo – USP e
que há mais de dez anos investiga os índices de nitrato em águas subterrâneas
no estado de São Paulo. “O nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas
águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo”, enfatiza Hirata. As
principais fontes de contaminação são o esgoto urbano, proveniente de fossas
sépticas ou negras ou mesmo do vazamento das redes de saneamento que sofrem com
a falta de manutenção, e o uso excessivo de fertilizantes nitrogenados no meio
rural. As pesquisas do CEPAS vêm demonstrando aumento na concentração de nitrato
nas águas subterrâneas, mesmo naquelas áreas em que há redes antigas de
saneamento — o que é indicativo da existência de vazamentos nos canos de
esgoto.
“As águas subterrâneas são um recurso pouco
entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas sejam utilizadas
por mais de 35-40% da população brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70%
de seus municípios são total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com
águas de aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte,
onde os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os
recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto – SP, Porto Alegre – RS,
Manaus – AM, Natal – RN, Brasília – DF, São José dos Campos – SP, Jales – SP,
Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas”, ressalta o
pesquisador.
Foto: bloggeografiaf
Ricardo Cesar Aoki Hirata é diretor do Centro de
Pesquisas de Águas Subterrâneas – CEPAS da Universidade de São Paulo – USP e
professor do Instituto de Geociências da mesma instituição. Possui graduação em
Geologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP,
mestrado e doutorado em Geociências com área de concentração em Recursos
Minerais e Hidrogeologia pela USP e pós-doutorado pela Universidade de
Waterloo, no Canadá. É consultor da UNESCO e da International Atomic Energy
Agency – IAEA, tendo atuado também como consultor da Organização Pan-Americana
da Saúde – OPAS/OMS.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Que relação há exatamente entre os
índices de nitrato e a contaminação de aquíferos por infiltração de esgoto
urbano?
Ricardo Hirata - O nitrato é o contaminante mais
comum encontrado nas águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo. As suas
características de alta mobilidade e grande persistência nas águas subterrâneas
fazem com que plumas de nitrato sejam encontradas em quase todos os aquíferos
urbanos no Brasil. Nesse caso, a principal fonte é o esgoto proveniente de
fossas sépticas ou negras ou mesmo do vazamento da rede de esgoto, que carecem
de manutenção.
IHU On-Line – Este cenário é também verificado no
meio rural? Qual a incidência de contaminação das águas por fertilizantes e
agrotóxicos?
Ricardo Hirata - O nitrato também é bastante comum
no meio rural, pois em áreas agrícolas o excesso de fertilizantes nitrogenados,
que é bastante comum, acaba chegando até o aquífero, contaminando-o. Neste
caso, não temos muitos estudos no Brasil e, portanto, temos ainda pouca ideia
de sua extensão. Mas, a partir da experiência em outros países, é de se
acreditar que haja problemas no Brasil, atingindo-se grandes áreas, sobretudo
pela sua grande vocação agrícola, de alta técnica.
IHU On-Line – Quais são os principais riscos da
ingestão de nitrato para a saúde humana?
Ricardo Hirata – O nitrato é um contaminante de
média toxicidade. Assim, em concentrações acima de 10mg/L (como
nitrogênio-nitrato; e 45mg/L, como nitrato), pode provocar a
meta-hemoglobinemia, que afeta bebês. Há igualmente suspeitas de que, em
concentrações bastante menores, ele também seja carcinogênico [que pode
provocar câncer].
IHU On-Line – Que outros contaminantes nocivos à
saúde humana são encontrados nas águas subterrâneas? Que riscos provocam?
Ricardo Hirata - Há uma infinidade de compostos que
podem, em concentrações excessivas, provocar problemas à saúde humana. Um grupo
de contaminantes bastante preocupantes são os solventes sintéticos clorados.
Esses apresentam grande toxicidade e são bastante persistentes e móveis em
aquíferos. O interessante é que, devido a sua grande volatilidade, esses contaminantes
não têm a mesma importância para as águas superficiais. Isso faz com que os
órgãos de controle ambiental do Brasil não deem atenção a eles em programas de
monitoramento regular nas águas subterrâneas. Metais pesados formam outro grupo
bem importante e nocivo às águas subterrâneas, embora eles não apresentem a
mesma mobilidade que o nitrato ou os solventes clorados nos aquíferos.
Ricardo 225x300 “As águas subterrâneas são um
recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado”
Ricardo Hirata. Foto: arquivo pessoal
IHU On-Line – Nesta perspectiva, quais foram os
principais resultados encontrados pelas pesquisas realizadas pelo CEPAS?
Ricardo Hirata - Os resultados que o CEPAS tem
acumulado ao longo desses 10 anos no estudo do nitrato fez concluir que esse contaminante
tem sido detectado cada vez mais no estado de São Paulo, permitindo afirmar que
todas as cidades paulistas apresentam, em variados graus, problemas com esse
contaminante. A rede oficial de monitoramento do estado, operada pela Companhia
Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB, tem inclusive mostrado aumentos nas
concentrações desse contaminante em seus poços, corroborando com os resultados
de nossas pesquisas.
Outra importante constatação que não era
considerada pelos gestores ambientais é que grandes plumas de nitrato estão
sendo detectadas em aquíferos urbanos, mesmo que a área já tenha há muito tempo
rede de esgoto. Embora a existência de rede de esgoto diminua substancialmente
a carga contaminante ao subsolo (comparativamente a fossas sépticas e negras),
a falta de manutenção da rede pública e os seus vazamentos são suficientes para
criar importantes plumas contaminantes. O que preocupa nesse cenário é que
simulações em computador feitas pelo nosso grupo com as plumas observadas em
cidades (mesmo com rede de esgoto) têm mostrado que estas levariam, caso
cessadas completamente as fugas de esgoto, mais de 60 anos para ter os seus
aquíferos novamente limpos, mostrando claramente que evitar o problema é a
melhor e mais barata solução para o nitrato. Neste caso, o que se conclui é que
a rede de esgoto moderna, com tubos plásticos, deve anteceder a qualquer
ocupação do terreno urbano.
IHU On-Line – Estes resultados servem de parâmetro
para outras realidades regionais e/ou para um cenário nacional?
Ricardo Hirata - Sim, a presença de nitrato em
outros aquíferos fora do estado de São Paulo deve ocorrer, e até em maiores
proporções, pois as cidades possuem menor cobertura de rede de esgoto
comparativamente às cidades paulistanas. O melhor exemplo disso é Natal – RN,
cidade abençoada pela excelente qualidade de suas águas subterrâneas, mas onde
a concessionária tem dificuldades de fornecer água sem nitrato (e potável) à
sua população. A combinação entre poços mal localizados (dentro da malha urbana
densa) e a falta histórica de rede de esgoto tem criado os sérios problemas lá
observados.
IHU On-Line – Há fiscalização sobre a potabilidade
da água de poços tubulares (artesianos)?
Ricardo Hirata - A legislação que controla o uso da
água subterrânea é estadual e em muitos estados há mecanismos para a
fiscalização da qualidade das águas extraídas por poços tubulares. O problema é
que essas leis são pouco seguidas, foram daqueles instrumentos que não
“pegaram” ainda. O usuário não vê importância na regularização de seu poço e
nos benefícios que isso pode trazer para ele e para toda a comunidade, e, por
extensão, ao ambiente. De outro lado, o estado não tem oferecido nenhum dos
serviços pelos quais ele é responsável, como o de implementar a
sustentabilidade do recurso, fazendo com que o controle evite a contaminação e
os problemas de superexploração.
A falta de um controle das demandas de água pode
levar a importantes problemas, muitas vezes desconhecidos pelos usuários,
incluindo:
a) redução dos níveis aquíferos, encarecendo o
bombeamento das águas subterrâneas pelo aumento do consumo de energia ou
necessidade de aprofundamento do poço;
b) redução dos fluxos de base a corpos de água
superficial, como rios e lagos, causando problemas de vazão durante, sobretudo,
as estiagens;
c) indução de contaminação e salinização das águas;
d) indução de problemas geotécnicos, como
afundamentos do terreno;
e) exaustão do recurso e sua perda.
Outra área de pesquisa do CEPAS está concentrada na
gestão dos recursos hídricos subterrâneos e tem concluído que o usuário não tem
ideia dos custos de extração das águas e, sobretudo, de que problemas advindos
da falta de controle afetam a sua extração. O usuário está pagando mais pela
água sem saber que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que
está provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com grandes
usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um conflito não
percebido pela população, que não tem ideia de causa e efeito nesse ambiente.
Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma percepção bastante restrita
desses problemas, ainda mais em áreas urbanas. As empresas, os condomínios e
mesmo as concessionárias poderiam economizar muito se medidas simples, mas bem
equacionadas, fossem implementadas em suas captações.
IHU On-Line – Qual é a relevância dos poços
tubulares para o abastecimento de água no Brasil?
Ricardo Hirata - Muito maior que a percepção que o
brasileiro e seus gestores têm. As águas subterrâneas são um recurso pouco
entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas sejam utilizadas
por mais de 35-40% da população brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70%
de seus municípios são total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com
águas de aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte,
onde os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os
recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto – SP, Porto Alegre – RS,
Manaus – AM, Natal – RN, Brasília – DF, São José dos Campos – SP, Jales – SP,
Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas. Mesmo na Bacia do Alto
Tietê, as águas subterrâneas são o quarto mais importante manancial, fornecendo
mais de 10 metros cúbicos por segundo de água, superando os outros cinco
mananciais superficiais operados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado
de São Paulo – SABESP. Na agricultura, o censo agrícola do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE computa mais de 450 mil poços tubulares (não
cacimbas) em áreas rurais brasileiras.
IHU On-Line – É viável a descontaminação da água
com incidência de nitrato?
Ricardo Hirata - Sim, há tecnologias, como os
sistemas de osmose reversa, que são bastante caras. Há técnicas de
descontaminação das águas dentro do aquífero, com a injeção de produtos que
provocam a desnitrificação, mas essas técnicas estão ainda no campo da
pesquisa. O que as empresas concessionárias de água têm feito é mesclar águas
contaminadas com outras em que a concentração de nitrato é menor, permitindo
fornecer águas não contaminadas.
IHU On-Line – O que pode ser feito para a reversão
deste quadro de contaminação contínua das águas subterrâneas?
Ricardo Hirata - Um dos grandes problemas que as
águas subterrâneas enfrentam é o desconhecimento de sua importância, o que leva
à falta de atenção por parte dos gestores. As águas subterrâneas não estão na
agenda dos governos nem do setor agrícola. De um lado há um recurso já bastante
utilizado no Brasil, cujos ganhos econômicos, sociais e ambientais não são percebidos,
entretanto, pela população. Isso faz com que esse recurso não seja discutido
nas grandes tomadas de decisão no planejamento urbano ou mesmo rural.
De outro lado, nos aquíferos é que se encontra
reservada a maior parte da água do mundo — 97% das águas doces e líquidas do
planeta estão nos aquíferos. Quando vemos problemas de estiagem, que serão
agravados pelas mudanças climáticas, podemos supor que é no recurso subterrâneo
que está a nossa possibilidade de superação do problema, a partir do uso conjunto
e racional do recurso subterrâneo e superficial. É uma imensa caixa de água de
excelente qualidade esperando para ser convenientemente aproveitada. Assim,
investir no conhecimento do recurso, buscando as novas oportunidades, é
imperioso para aumentar a segurança hídrica em cidades.
Um segundo ponto é que os estados, por meio de seus
órgãos gestores, realmente gestionem as águas subterrâneas, fazendo com que as
leis sejam de fato cumpridas, e que a população e usuários sejam informados dos
benefícios e limitações que podem surgir pelo mau uso do recurso ou do solo.
IHU On-Line – As políticas públicas de saneamento e
a legislação brasileira dão conta da preservação das águas e, consequentemente,
da saúde humana?
Ricardo Hirata - Em parte sim, mas é importante
notar que a simples presença de redes de esgoto não elimina o problema da
contaminação por nitrato em áreas urbanas. Novas redes, com novos materiais, e
manutenção periódica é que vão garantir a qualidade das águas. Da mesma forma,
os planejadores devem levar em consideração que é importante construir redes de
esgoto nas novas áreas urbanas (preferencialmente antes de sua ocupação),
antecipando-se aos problemas.
Outro ponto importante é que muitos sanitaristas
acreditam que se deveria fechar os poços tubulares quando a área já tenha rede
de água potável. A motivação para isso é muitas vezes simplista e não leva em
consideração o real papel que o abastecimento privado tem nas nossas cidades.
Por exemplo, considerando-se as cidades da Bacia do Alto Tietê. A população é
razoavelmente bem servida de água, mas o que os dados estatísticos oficiais
esquecem é que temos mais de 10 metros cúbicos por segundo advindos de 12 mil
poços privados que suplementam o abastecimento. Sem essa água, o sistema de
abastecimento não daria conta e teríamos sérios problemas. O mesmo é para
Recife, onde mais de 13 mil poços (a maioria privada) suplementam o
abastecimento da Companhia Pernambucana de Saneamento – COMPESA e fazem a diferença,
sobretudo em períodos de estiagem como o que ocorreu recentemente.
Adicionalmente, deve-se considerar a economia que
as águas subterrâneas trazem para o usuário. Um poço bem operado em um aquífero
produtivo geralmente fornece água com menores custos, comparativamente às águas
das concessionárias, e muitas vezes com qualidade superior. Vide as águas
minerais. Todas elas são subterrâneas!
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
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