Depois de séculos de extermínio, a população indígena volta a crescer
Bruno Paes Manso
Foto: Ricardo Stuckert |
A população indígena já aumenta 3,5% ao ano, mas etnias como a dos ianomâmis não estão ainda fora de risco |
Os 2,06 metros de altura do índio Mengrire causaram alvoroço entre os brasileiros quando os índios kranhacarore foram fotografados pela primeira vez na Amazônia na década de 70. Na época, esses índios gigantes eram perto de 600, vivendo à beira dos igarapés em uma floresta fechada ao longo da Serra do Cachimbo, no Pará e no Mato Grosso. Na aproximação, houve troca de presentes e abraços amistosos. Em 1975, 90% da tribo estava morta. O desfecho feliz da triste história dos panarás (pronome nós), como eles chamam a si mesmos, reflete as boas novas sobre a atual situação dos índios brasileiros. A tribo, que definhou e chegou a ter apenas 79 membros, hoje está quase três vezes maior. Em melhores condições de vida, os panarás recuperaram a auto-estima, reintroduziram os antigos rituais e aprenderam novas técnicas, como pescar com anzol. Caminharam para a extinção enquanto estiveram fora do seu habitat, ameaçados por estradas, por onde vieram a cachaça, a diarréia e as epidemias. Os panarás voltaram para a mata fechada e há uma grande quantidade de crianças entre eles nos dias de hoje.
Sim, o que durante muito tempo parecia impossível está acontecendo: o número de índios no Brasil e na Amazônia está aumentando cada vez mais. A taxa de crescimento da população indígena é de 3,5% ao ano, superando a média nacional, que é de 1,3%. "O fenômeno é semelhante ao baby boom do pós-guerra, em que as populações, depois da matança geral, tendem a recuperar as perdas reproduzindo-se mais rapidamente", diz a antropóloga Marta Azevedo, responsável por uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos em População da Universidade de Campinas.
fotos: Ricardo Stuckert | |
Os índios ainda vivem como antigamente. O pajé Nelson (à esq.) herdou uma velha tarefa: evitar que o céu lhes caia na cabeça |
Outro motivo seria a imunização dos índios por meio de vacinas e anticorpos adquiridos após o primeiro contato. O momento é de otimismo, passados os tempos de matança, escravismo, catequização forçada ou da mera indiferença das autoridades. Em 1500, quando os portugueses chegaram ao Brasil, estima-se que havia por aqui cerca de 6 milhões de índios. Nos anos 50, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, a população indígena brasileira estava entre 68.000 e 100.000 habitantes. Atualmente há cerca de 280.000 índios no Brasil. Contando os que vivem em centros urbanos, ultrapassam os 300.000.
O extermínio é um risco do passado, e os direitos sobre as terras, assegurados na Constituição de 1988, estão em fase de consolidação, com a ajuda de 100 associações indígenas legalizadas. A maior parte das terras indígenas (98%) está na Amazônia Legal, onde moram 170000 índios. São 990000 quilômetros quadrados 20% das terras amazônicas. Nos Estados do Nordeste, Sul e Sudeste, onde há menos terras para mais gente, os 110.000 índios restantes acomodam-se em 12400 quilômetros quadrados. Cada índio brasileiro hoje tem em média 3,6 quilômetros quadrados para viver, ou uma área equivalente a 436 campos de futebol. No total, é dos índios quase 12% do território nacional.
Eles produzem coletivamente, dividem o seu ganho e não conhecem a propriedade privada. Os sinais de que isso pode mudar ainda são tênues. "Dinheiro pode ser importante", diz o tuxaua Mateus Cós (ao lado) | |
Fotos: Ricardo Stuckert |
Com terras garantidas e população crescente, pode parecer que a situação dos índios se encontra agora sob controle. Não é bem assim. O maior desafio da atualidade é manter viva sua riqueza cultural. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia em torno de 1.300 línguas indígenas. Atualmente existem 170. O pior é que cerca de 35% dos 210 povos com culturas diferentes têm menos de 200 pessoas. Os jumas, por exemplo, viviam no século XVIII perto do Rio Purus, na divisa do Acre com o Amazonas, e eram 15.000 pessoas. Tidos como cordiais e amigáveis, muitos viraram escravos na época da colonização e parte da tribo foi dizimada. Na década de 90, restavam apenas três representantes da etnia: duas velhas índias, Baru e Inté, e o jovem guerreiro Karé, morto por uma onça há quatro anos. Foi o fim de mais um povo indígena e de sua cultura. "Cada vez que isso acontece, o prejuízo é terrível, incalculável", diz Carlos Alberto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental.
Entre os povos ameaçados estão os ianomâmis, que foram os últimos a ter contato com a civilização. Vivendo nas cabeceiras dos rios Negro e Branco, sua população atual chega a pouco mais de 8.000 pessoas. O encontro com garimpeiros, que invadem suas terras, trazendo doenças, violência e alcoolismo, abala a estabilidade do povo. No final da década de 80 e no início da de 90, 2.200 ianomâmis morreram em virtude da malária, em primeiro lugar, e da violência. Entre os índios, os garimpeiros são conhecidos por outro nome: os "comedores de terras". Calcula-se que 300.000 garimpeiros entraram ilegalmente em terras indígenas na Amazônia. Mas o problema não é insolúvel. Na aldeia Nazaré, onde moram 78 ianomâmis, foram expulsos pela Polícia Federal. E, sobretudo, já existem lugares onde a cultura indígena convive bem com a chegada da civilização, como no município de São Gabriel da Cachoeira (leia reportagem).
A aldeia Nazaré, na área rural de São Gabriel, é um bom exemplo de como muitos índios da Amazônia ainda conseguem viver como seus antepassados. O tuxaua Mateus Cós Santos, de 49 anos, chefe da tribo, sabe da riqueza da região, que segundo os geólogos é farta em jazidas de ouro. Admite que "ganhar dinheiro pode ser importante", mas depois de algumas prioridades. Na realidade, os índios ainda vivem como antigamente, em comunidade. Partilham o que ganham e produzem coletivamente, ajudando tribos vizinhas na caça e na pesca. Entre eles, não existe propriedade privada. Ainda têm outras coisas com que se preocupar. Evitar que o céu caia sobre suas cabeças, por exemplo. Cabe aos pajés Nelson, Renato e Manuel, através de suas rezas durante as quais cheiram um pó chamado pariká, feito com ervas que lhes permitem conversar com os espíritos , evitar a tragédia, mantendo equilibradas as colunas que sustentam o mundo de cima.
O esforço das autoridades para manter a diversidade cultural entre os índios pode evitar o desaparecimento de muita coisa interessante. Um quarto de todas as drogas prescritas pela medicina ocidental vem das plantas das florestas e três quartos foram colhidos a partir de informações de povos indígenas. Na área da educação, a língua tucana, apesar do pequeno número de palavras, é comparada por lingüistas com a língua grega por sua riqueza estrutural possui, por exemplo, doze formas diferentes de conjugar o verbo no passado. Permanece a questão de como ficará o índio num mundo globalizado, mas pelo menos já se sabe o que é preciso preservar.
fonte: http://veja.abril.com.br/especiais/amazonia/p_052.html
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