segunda-feira, 26 de março de 2012

As enchentes e a cultura da impermeabilização

Valério Igor P. Victorino, Sociólogo, Docente UMAPAZ,Janeiro 2010

São Paulo não é mais a terra da garoa há muito tempo. Um novo grupo musical que quisesse representar no nome o clima da cidade deveria se chamar Demônios da Tempestade e fazer um estilo bem pesado, talvez um heavy metal inspirado no estrondo dos trovões e na fúria das tormentas tropicais que insistem em nos afligir nos últimos meses.

Do Jardim Pantanal ao Jardim Paulista há muito prejuízo sendo contabilizado; desde horas de trabalho até vidas humanas, passando pelo sofrimento de quem perde tudo o que tem, mesmo quando este tudo é quase nada. Dentro em breve os ricos e temerosos irão encomendar carros não somente a prova de balas, mas a prova de água também.

O governo do estado já anunciou a compra de carros anfíbios para realizar os atendimentos de emergência. Tempos molhados.

Pois bem o que nós, habitantes da cidade mais rica, cosmopolita, moderna e dinâmica da América Latina podemos fazer diante destes fenômenos climáticos extremos e de alto risco social? Inicialmente entender as causas. Sim, é uma ótima oportunidade para ampliarmos nossos conhecimentos sobre o meio que nos cerca. A necessidade é mãe da invenção e da ciência.

Diferentemente do aquecimento global, quando se trata de enchentes nas cidades não há polêmica, pois são reconhecidos dois tipos:

a) naturais, decorrentes da expansão dos rios sobre as várzeas;
b) antrópicas: decorrentes do impacto do modo de ocupação do solo com usos residenciais, comerciais e industriais.

Constata-se que o processo de urbanização transforma a superfície natural pela impermeabilização da bacia hidrográfica e pela criação de condutos para o escoamento pluvial provocando efeitos que modificam os componentes do ciclo hidrológico:

1) Ocorre a redução da infiltração no solo;
2) O volume que deixa de infiltrar fica na superfície, aumentando o escoamento superficial;
3) As águas se deslocam mais rapidamente, devido á construção de condutos superficiais para o escoamento das chuvas;
4) Com a redução da infiltração tende a diminuir o nível do lençol freático por falta de alimentação, reduzindo o escoamento subterrâneo;
5) Devido à diminuição da cobertura vegetal ocorre uma redução da evapotranspiração.

O aumento da freqüência e da magnitude das tormentas e das decorrentes enchentes tem várias explicações. Com certeza a construção das duas represas e a retificação dos dois principais rios que cortam a cidade interferiu no ciclo hidrológico e modificou as condições climáticas da bacia hidrográfica do Alto Tietê. Por outro lado, as superfícies impermeáveis absorvem parte da energia solar, aumentando a temperatura ambiente e produzindo ilhas de calor na parte central da cidade, onde predomina concreto e asfalto. Devido à sua cor o asfalto absorve mais energia solar e à medida que a superfície de concreto envelhece e vai escurecendo, tende a aumentar a absorção de radiação solar. Com isso ocorre o aumento da radiação térmica, que volta para o ambiente gerando calor. Segundo Carlos Tucci, “A elevação de temperatura também cria condições de movimento de ar ascendente, podendo aumentar as precipitações.” Como, na área urbana, as precipitações críticas de baixa duração são as mais intensas, essas condições contribuem para agravar as enchentes urbanas.

Como se enfrenta o problema das enchentes?
As medidas de controle de inundações podem ser estruturais, que são aquelas que modificam o sistema fluvial com grandes obras de engenharia que:

a) aceleram o escoamento das águas (canalização);
b) retardam o escoamento (reservatórios);
c) desviam o escoamento das águas. Sempre tem custos elevados e podem criar a falsa sensação de segurança, permitindo a ocupação de áreas inundáveis, o que, futuramente, pode resultar em danos significativos. Também existem as medidas não-estruturais, que são aquelas que modificam a atividade antrópicas por zoneamento das áreas de inundação, regulamentação do uso do solo com risco de inundação, indução de novas formas de ocupação com áreas de lazer, seguro contra inundação, sistemas de alerta etc. As medidas de controle do escoamento das águas variam também de acordo com o tipo de ação:

Ação na bacia:
a) na fonte: é o tipo de controle que atua sobre o lote, praças e passeios;
b) na microdrenagem: é o controle sobre as área de loteamentos;
c) na macrodrenagem: é o controle sobre os principais riachos urbanos.

Ação sobre o hidrograma:
a) Infiltração e percolação: cria espaço para que a água tenha maior infiltração e percolação (velocidade do fluxo da água através da camada não-saturada até o lençol freático - zona saturada);
b) Armazenamento: através de grandes reservatórios, cujo efeito é reter parte do volume do escoamento superficial, reduzindo seu pico e distribuindo a vazão no tempo;
c) Aumento da eficiência do escoamento: através de condutos e canais, drenando áreas inundadas;
d) Barragens e estações de bombeamento: solução tradicional de controle localizado de enchentes em áreas urbanas que não possuem espaço para amortecimento da inundação.

Os governantes, municipal e estadual, têm optado quase que exclusivamente por medidas estruturais de combate às enchentes, sendo que até o inadequado neologismo “piscinão” entrou para o linguajar técnico-jurídico do Plano Diretor de São Paulo como ação estratégica de combate às enchentes. O planos diretores de macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê, tiveram orçamentos bilionários para construção de “piscinões”, para o rebaixamento da calha do rio Tietê, canalização de rios e construção de barragens. Enfim, são bilhões de reais gastos em obras de combate às enchentes que sempre estão aquém das necessidades que a metrópole apresenta. Sem dúvida que grandes obras estruturais são necessárias, mas evidentemente insuficientes, e muitas vezes apresentando problemas adicionais.

Se a questão das enchentes é tratada simplesmente como um problema hidráulico, de engenharia, as soluções estruturais ofuscam qualquer alternativa ou complementaridade. Mas se o drama das enchentes for, e deve ser, tratado como um problema urbano, uma amplitude maior de opções emergirá em decorrência da compreensão das características e da dinâmica do processo de urbanização da bacia hidrográfica.

A urbanização é a marca humana sobre o meio físico e a essência do processo de intervenção antrópica sobre a bacia hidrográfica do Alto Tietê revela um modo de uso e ocupação do solo que pode ser caracterizado, para fins da compreensão do fenômeno das enchentes, como cultura de impermeabilização. Pois é, enchente também é cultura. Estima-se que a taxa de impermeabilização do município seja de 45%, conforme a Resolução CADES 66/2001.

Enfrentando a impermeabilização
Reverter esta cultura de impermeabilização e aumentar a eficiência do sistema de drenagem é o desafio que se apresenta para o poder público e para a cidadania. O aumento da infiltração e percolação das águas precipitadas significa criar condições o mais próximo possível das condições naturais da bacia, considerando que foi a impermeabilização do solo que aumentou o escoamento para os canais e condutos que não suportaram a vazão.

Dentre as medidas não-estruturais de combate às enchentes a desimpermeabilização emerge enquanto diretriz da Política Ambiental do Município no Plano diretor, conforme o Art. 56:

II - o estabelecimento do zoneamento ambiental compatível com as diretrizes para ocupação do solo;
III - o controle do uso e da ocupação de fundos de vale, áreas sujeitas à inundação, mananciais, áreas de alta declividade e cabeceiras de drenagem;
IV - a ampliação das áreas permeáveis no território do Município. Em seu capítulo do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Urbano, o Art. 67 apresenta entre os objetivos para o Sistema de Drenagem Urbana: III - interromper o processo de impermeabilização do solo;
IV - conscientizar a população quanto à importância do escoamento das águas pluviais. Enquanto ação estratégica do sistema de drenagem urbana o Art. 69 é explicito:
XI - adotar, nos programas de pavimentação de vias locais e passeios de pedestres, pisos drenantes e criar mecanismos legais para que as áreas descobertas sejam pavimentadas com pisos drenantes.

O programa de pavimentação também apresenta a demanda: Art. 98 - São ações estratégicas dos Programas de Pavimentação:
III - criar mecanismos legais para que os passeios e as áreas externas pavimentadas implantem pisos drenantes; IV - adotar nos programas de pavimentação de vias locais pisos que permitam a drenagem das águas pluviais para o solo.

Enfim, o aumento das áreas de infiltração e percolação nos lotes, nas ruas de pouco tráfego, nos estacionamentos, nos parques, nos passeios, nas quadras esportivas etc. pode se dar pela utilização de pavimentos permeáveis (asfalto ou concreto drenante).

Como há pouca experiência com estes novos materiais no Brasil, a SIURB (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana) em convênio com a USP está testando concreto e asfalto permeáveis para serem aplicados em pontos crônicos de enchente. Foram desenvolvidos dois materiais: o pavimento drenante asfáltico e o concreto intertravado drenante, este último composto por blocos de concreto poroso. A aplicação dessas soluções é semelhante à do piso asfáltico e do concreto intertravado, respectivamente, que são os produtos usualmente utilizados.

São Paulo necessita elaborar e implantar o Plano Diretor de Drenagem do Município de São Paulo (PDDMSP) integrado com o Plano Diretor de Macrodrenagem da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (PDMAT), conforme item I do artigo 69 do Plano Diretor Estratégico. Esta é uma prioridade a ser construída mesclando medidas estruturais e não-estruturais de combate às enchentes.

Como se vê, o Plano Diretor contempla, em tese, como plano, tudo que é necessário para o enfrentamento do problema. Trata-se de tornar real estes mecanismos e proposições por meio de regulamentações e detalhamento de ações, que somente podem emergir com a pressão da sociedade, que poderá se revelar no entrelaçamento entre os planos regionais e o plano diretor de drenagem do município, com cada plano regional contendo o seu plano diretor de drenagem, reforçando adoção de medidas não-estruturais.

A questão mais grave é que quando as chuvas passarem, e elas passarão, e o Sol voltar a brilhar, venhamos a nos esquecer do problema das enchentes. De fato, o cidadão comum vai querer esquecer todo sofrimento e prejuízo deixado pelas tormentas. Contudo, se os dirigentes técnicos e políticos não priorizarem a mitigação do problema por meio de políticas públicas para o aumento da permeabilidade do solo urbano – objetivando o resgate das condições naturais da bacia hidrográfica -, as tragédias voltarão a acontecer.
 
fonte: http://www.blogumapaz.blogspot.com/

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