30/5/2011 - 10h16,por Susana Segovia*, envolverde
O projeto HidroAysén já faz sentir seus efeitos em ânimos alterados e relações rompidas em comunidades da Patagônia chilena.
 
Cochrane,  Chile, 30 de maio de 2011 (Terramérica).- A área a ser inundada pelas  cinco represas da HidroAysén não supera 0,05% da superfície da região  chilena de Aysén. Mas é justamente a região dos vales onde reside a  maior parte da população, afirmam os que lá vivem. No coração da austral  Patagônia, nos vales do Rio Ñadis, cerca de 45 quilômetros ao Sul da  cidade de Cochrane, vivem 14 famílias que devem ser reassentadas, já que  a central hidrelétrica Baker 2, uma das cinco projetadas pelo consórcio  HidroAysén, deixará a área debaixo d’água. 
Moradores desta localidade, Elisabeth Schindele, Rosendo Sánchez e  seus dois filhos se dedicam em seus 492 hectares à criação de animais,  cultivo de horta familiar, organização de cavalgadas para El Saltón, no  Rio Baker. Seus vizinhos mais próximos estão a quatro quilômetros.  Segundo pesquisa da consultoria internacional Ipsos, realizada no final  de abril, 61,5% dos entrevistados em todo o país se manifestaram  contrários às hidrelétricas, que no dia 9 deste mês obtiveram luz verde  das autoridades regionais – nomeadas pela Presidência – após três anos  de tramitação e sem responder algumas das 11 mil observações feitas pela  sociedade civil.
 
“Fizemos observações no processo de participação cidadã e até hoje  não foram respondidas. Queremos saber o que houve com nossa associação  de moradores, com nossa sede, o que aconteceu com nossas relações  culturais, familiares, econômicas”, disse Elisabeth ao Terramérica. “Se  nos reassentarem separadamente se perderá esta comunidade, e eles não  fazem um esforço para entender isto”, acrescentou. As 14 famílias serão  reassentadas antes do enchimento da represa, mas somente aquelas com  títulos de propriedade, explicou Elisabeth. Há trabalhadores  estabelecidos aqui sem serem os proprietários, que são parte da forma de  viver no Baker, afirmou.
 
As represas serão construídas nos rios Baker, o mais caudaloso do  país, e Pascua, para geração de 2.700 megawatts e levá-los por uma linha  de transmissão de dois mil quilômetros até Santiago e a região mineira  de Atacama. A HidroAysén é formada pelas empresas Endesa (firma  espanhola de energia adquirida pela italiana Enel) e a Colbún, parte do  grupo chileno Matte, que controlam 70% do mercado elétrico nacional.
 
Chega-se a Cochrane subindo na direção Norte pela estrada austral. A  escultura de um huemul (espécie de cervo) na praça e um condor de  madeira em uma esquina servem de apresentação para esta cidade de três  mil habitantes na qual Teresa Catalán tem um restaurante familiar. Filha  de pioneiros da região, depois de viver 20 anos na vizinha região de  Los Lagos, decidiu voltar para a Patagônia com seu marido. “Vivi em  lugares onde havia muito dinheiro e depois se transformaram em lugares  fantasmas, onde o estigma de uma localidade ruim é o que resta após essa  riqueza enorme acabar”, disse Teresa ao Terramérica.
 
Estima-se que cerca de cinco mil trabalhadores serão atraídos pelas  oportunidades de trabalho em um período de dez a 12 anos. Os habitantes  da Patagônia temem que com eles aumente a criminalidade, a prostituição e  a gravidez precoce. “O que me preocupa muito é a gravidez de  adolescentes que pode sofrer um aumento pela grande população masculina  que os projetos trarão”, disse à IPS a conselheira de Cochrane, Tatiana  Aguilera.
 
Entre 1985 e 1987, a Endesa construiu uma minicentral hidrelétrica de  passagem para abastecer as populações desta área. Embora a obra não  tenha atraído tantos trabalhadores, deixou uma geração de jovens sem  sobrenomes paternos na comunidade, disse Tatiana. Cochrane tem um  hospital público e um edifício modular construído em 1970 para atender  as comunidades de Villa O’Higgins, Caleta de Tortel, Puerto Bertrand e  Puerto Guadal. No entanto, partos só são realizados em Coyhaique, cerca  de 345 quilômetros a Leste daqui, e a viagem demora de seis a sete  horas.
 
A empresa oferece a instalação de um centro privado de cuidados  médicos para seus trabalhadores, mas a saúde dos que vierem trabalhar em  atividades vinculadas ficará a cargo do sistema público, disse Tatiana.  Já há impactos intangíveis. “Há intervenção em nossas culturas, e isto  se reflete no fato de que antes muitas coisas eram feitas pela vontade  das pessoas”, ressaltou a conselheira. É o caso de “El Encuentro  Costumbrista”, uma mostra de montaria, doma e ordenha que era organizada  com participação voluntária dos moradores. Desde que a HidroAysén  passou a financiá-lo, acabou a ideia de colaborar. Agora quem participa  recebe um pagamento.
 
A Caleta de Tortel, a comunidade mais ao Sul de Aysén, está encravada  na desembocadura do Rio Baker, entre os campos de gelo Norte e Sul e o  Oceano Pacífico. Não possui ruas, mas passarelas de madeira que  atravessam canais e estuários, ilhas e áreas escarpadas da Cordilheira.  Por estas passarelas que tecem a vida de Caleta de Tortel passa Irma  Gruelet, pequena comerciante que tem um quiosque de café e doces na  entrada do povoado. Sua casa fica perto da escola e, enquanto conversa,  ouve-se, por trás de sua voz, as das crianças saindo da aula. “Aqui nem  todos estão descontentes, pelo contrário, a gente às vezes precisa de  ajuda, e a HidroAysén a tem dado”, afirmou Irma.
 
É o caso de Nancy Domínguez. A empresa lhe financiou um quiosque de  doces e artesanatos para turistas que visitam o estuário do Rio Baker, e  que se teme sofra inundações periódicas com as represas. “Claro que as  represas produzem um dano ambiental, mas para nós, que somos idosos de  baixa renda, isto permite que melhoremos nossa vida”, afirmou Nancy. Na  capital regional, Coyhaique, a rádio católica Santa Maria questiona o  projeto. Já houve impacto social mesmo antes da aprovação da HidroAysén,  disse ao Terramérica a jornalista Claudia Torres em uma das cabines de  transmissão. A comunidade se dividiu entre quem recebeu dinheiro da  empresa e quem não recebeu, entre “vendidos” e sem preço, descreveu.  “Eles não dimensionaram o dano causado”, disse.
 
Para Michel Mouré, gerente de operações da HidroAysén, sugerir que os  cidadãos de Aysén se deixam comprar pela empresa “é um insulto”. A  colaboração, desde bolsas até apoio a microempresários, é parte da  política de “responsabilidade empresarial” da HidroAysén, que representa  uma oportunidade de superar o desemprego e a pobreza em uma das áreas  mais abandonadas do país, afirmou
 
No dia 20 de maio, o conselheiro regional René Hermosilla Soubelet,  do governante partido Renovação Nacional (RN), disse no programa de  Claudia Torres que “há gente do RN envolvida com a HidroAysén, que  recebe dinheiro… Essa gente, creio, teria que se afastar imediatamente  deste processo”. No mesmo dia, houve um incêndio em uma casa cujo  proprietário, favorável às represas, culpou “delinquentes que estão  aproveitando a oportunidade para dividir a região”.
 
A Oeste de Coyhaique, em Puerto Aysén, as pessoas caminham lentamente  e reconhecem sem esforço quem não é da região. Em uma loja de discos é  oferecido o primeiro compacto de um artista local que canta a Patagônia,  e um grupo de jovens organiza uma cavalgada de sensibilização  ecológica. Para o dirigente Hugo Díaz, da Agrupação Wall-Mapu, ali  reside a esperança. “Cada dia mais jovens se unem a esta luta, e estes  jovens intercedem ou influem nas cabeças de seus pais”, afirmou.
 
* A autora é correspondente da IPS.