quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

No setor de energia brasileiro não foi a água que sumiu foi o planejamento

por Sérgio Abranches, da Ecopolitica

Ainda não é a mudança climática a culpada pelos apagões. Ela virá, em algum momento no futuro, reduzir a capacidade de nossos reservatórios permanentemente e precisamos nos preparar para sermos menos dependentes das chuvas para termos eletricidade. O apagão, ao que tudo indica, foi causado por um problema físico em uma das linhas e, porque o sistema está sobrecarregado, ele se auto-desligou. É um mecanismo de autoproteção do próprio sistema.

Agora, os reservatórios têm muitos problemas. Falta manutenção, muitos estão assoreados, vários são poluídos pelas águas dos rios de sua bacia, todos muito maltratados. Eles são usados em excesso todos os anos, o ano inteiro, por falta de alternativa. Devíamos manter estoques estratégicos de água nos reservatórios e usar mais eólica e solar. Mas, não, superutilizamos os reservatórios e fazemos menos eólica do que poderíamos fazer, nada fazemos em energia solar. Os reservatórios esvaziam não porque a chuva não os está enchendo, mas porque tiramos mais água deles do que entra.

O governo federal engavetou o programa de eficiência e economia de energia. Não criou condições para tornar realidade a geração distribuída, que permitiria a instalação de placas solares nas residências e prédios, que entregariam para o sistema a eletricidade excedente, aquela que não tivessem usado nos momentos de pico de geração. Faltam incentivos, os preços são altos, as distribuidoras não se interessam em promover a interligação das instalações residenciais e prediais ao sistema. Esta semana, em Nova York, conversei com um brasileiro que mora lá há mais de 20 anos. Ele tem um serviço de táxi especial. Recebeu uma proposta da companhia de eletricidade, para instalar placas solares de graça na casa dele, que fica em um subúrbio de Nova York. Ele pagará uma taxa anual básica, que fará com que sua conta de eletricidade seja reduzida em mais de 50%. Na Califórnia, o governo subsidiou a instalação de placas solares em residências e prédios comerciais. Hoje, várias cidades já estão com 100% das edificações dotadas de sistemas solares. O estado enfrenta a maior seca dos últimos 500 anos e não tem problema de energia.

Falta planejamento no setor elétrico. Este é um setor que sempre teve, historicamente grande capacidade de planejamento, já exportou bons planejadores para outras partes do governo no passado. Mas, hoje, não temos planejamento. O sistema tem cometido erros primários. Está comandado por razões políticas, por um ministro que não tem a menor qualificação para estar à frente de uma área tão sensível. O setor perdeu, sobretudo, capacidade de pensar o futuro contemporaneamente, para investir em um sistema mais inteligente, que lide melhor com a diversificação de fontes de energia e com programas efetivos de economia de energia e geração distribuída. Os erros de política se repetem. Não há gestão eficiente de reservatórios. O exemplo mais sério de erros primários de planejamento foi a construção de usinas eólicas, que estão operacionais, mas não entregam eletricidade ao sistema porque as linhas de distribuição não foram construídas. O que temos é um sistema que opera da mão para a boca, de crise em crise.

O resultado é que estamos vulneráveis a apagões. Pagamos um absurdo de subsídios para manter baixos os preços da energia, estimulando o consumo excessivo e o desperdício. Pagamos por eólicas que não podem entregar energia por faltas de linha. E pagamos o dobro pela energia de termelétricas que, além de poluir e aumentar o custo da energia para o tesouro, sujam nossa matriz elétrica e emitem gases estufa. Tudo errado. E a única solução que o pensamento torto que domina o sistema tem para oferecer é ampliar a usina de Belo Monte. Belo Monte é a falsa solução. Não funcionará adequadamente, entregará sempre muito menos Mw/hora reais do que pagamos para sua construção, baseada em ilusório potencial instalado. Amplia-la é dobrar o erro e aprofundar as contradições presentes no sistema elétrico, que podem leva-lo à ruptura geral. Tudo isso custa uma fortuna ao contribuinte. O que o governo tira no preço da eletricidade (da gasolina e do diesel também) devolve em maior proporção no gasto do Tesouro, nos impostos e na dívida que financiam esse gasto.

O sobreuso da eletricidade estressa um sistema que já opera no limite. Dependente de hidrelétricas, sem alternativas boas, ele está usando as termelétricas muito além do limite para o qual elas foram pensadas, dobrando o custo da eletricidade e aumentando os danos ambientais associados à energia suja. O governo – e muita gente do setor, por interesse particular – vive se gabando de que temos a “matriz mais limpa do mundo”. Mas todos se esquecem de dizer que nessa “matriz mais limpa do mundo”, o carvão, a fonte mais suja, tem aumentado significativamente sua participação, por decisão do governo. Aumentou 30% no último período. E o governo quer aumentar mais o uso do carvão. Estamos pensando o sistema olhando para o retrovisor. Os governos da Terceira República jamais suspeitaram do que as próximas décadas significarão para o campo da energia. Esse menos ainda.
Mas o governo dirá que não há problemas. No Brasil, em período eleitoral, a primeira vítima é sempre a verdade.

* Publicado originalmente no site Ecopolitica.
fonte: http://envolverde.com.br/ambiente/setor-de-energia-brasileiro-nao-foi-agua-que-sumiu-foi-o-planejamento/

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

As projeções sobre o futuro da água

por Fred Seifert,

As projeções sobre o futuro da água e suas implicações para a indústria.


Há uma crescente preocupação com a disponibilidade da água nas próximas décadas. A apreensão tem sentido, já que grande parcela da população mundial ainda vive sem acesso à água potável e ao saneamento básico, situação que tende a piorar com o aumento populacional esperado. Entre as soluções propostas está a da precificação dos recursos hídricos, o que poderia implicar em custos significativos para diversos setores da indústria. Mas será esta solução puramente econômica é a definitiva?

Água: um recurso cada vez mais escasso

As Nações Unidas definiram 2013 como o ano mundial da cooperação pela água. A preocupação com o tema não é de forma alguma infundada. De acordo com dados da própria ONU, pelo menos 780 milhões de pessoas vivem sem acesso à água potável, enquanto 2,5 bilhões não possuem saneamento básico adequado.

As projeções para o ano de 2050 também são alarmantes. Enquanto a população mundial vai saltar dos atuais 7 bilhões para 9 bilhões, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que o aumento na utilização de água será da magnitude de 55%. Dessas pessoas, em torno de 40% viverão em regiões de severo estresse hídrico. Embora espera-se que um dos Objetivos do Milênio seja alcançado, reduzindo o número de pessoas sem acesso à água mais do que pela metade – de 780 milhões para 240 milhões, outro muito provavelmente não será. Em 2050, ainda serão 1,4 bilhão de pessoas sem saneamento básico.

Segundo informações da OCDE, as principais atividades responsáveis pela utilização dos recursos hídricos são a agricultura e a produção de alimentos (70%), seguidas pela indústria (20%), o que inclui a geração de energia. Os 10% restantes são gastos através do uso doméstico. O aumento populacional gerará uma pressão considerável na produção de alimentos e espera-se um crescimento de demanda na casa de 90% até 2050. A produção industrial não deve ficar muito atrás e só a geração de energia através da hidroeletricidade e outras fontes renováveis deve subir em torno de 60%.

A água doce é um dos ativos ambientais de valor inestimável para a vida humana e já a utilizamos em um nível superior ao que a natureza consegue repor. Apesar de nosso planeta ser, em grande parte, coberto por água, 97% desta está na forma de água salgada nos oceanos e apenas 2,5% é potável. Deste menor percentual, cerca de dois terços existem na forma de geleiras, o que nos deixa com menos de 1% de toda a água existente no globo disponível para consumo. Para piorar a situação, a maior parte dessa água potável se apresenta disponível em momentos inoportunos: monções e alagamentos. Além disso, 20% está localizada em locais muito remotos, longe do nosso alcance.

O resultado final é que apenas 0,2% dos recursos hídricos mundiais está efetivamente em uso, distribuído de modo bastante desigual, e um valor ainda menor, 0,13%, é renovável – precipitação em direção ao solo e posterior evaporação. A utilização a níveis atuais é insustentável e as previsões futuras, com aumento no consumo, tornam o cenário ainda mais preocupante. Para garantir a disponibilidade da água serão necessários mecanismos de controle e o desenvolvimento de tecnologias para aumento de eficiência.

A precificação da água no Brasil

Entre os mecanismos desenvolvidos para promover o uso eficiente dos recursos hídricos, talvez seja o da precificação aquele que ganhou maior popularidade. Muitos especialistas assumem que a determinação de um preço justo para a água é etapa necessária para garantir o consumo racional desse ativo ambiental. A ideia reside na teoria de que, havendo um preço, o usuário tem maior noção do valor do recurso e agirá de maneira mais prudente, aumentando sua eficiência e produtividade.

No Brasil, a água, de maneira geral, é tratada como bem público. De qualquer maneira, indústrias, agricultores, empresas de saneamento e qualquer pessoa que utilize a água proveniente de rios, lençóis freáticos e lagos precisa de uma outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para garantir o direito de uso. É através da gerência de outorga que, segundo a ANA, a agência realiza o controle qualitativo e quantitativo do uso da água.

Entretanto, já existem casos de cobranças pela utilização de recursos hídricos no país. De acordo com a Agência Nacional de Águas, o recolhimento está em vigor em alguns rios sob domínio da União e em rios, lagos e baías de responsabilidade estadual em Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e no Distrito Federal. O método utilizado é o volumétrico: o usuário paga de acordo com a quantidade utilizada, existindo um valor determinado em R$/m³.

Considerando uma universalização dessa cobrança em território nacional, o que parece ser uma tendência para os próximos anos, é possível a realização de alguns cálculos exploratórios para se determinar a magnitude do impacto dessa precificação no custo operacional e no valor de mercado de empresas de determinados setores:


Para a elaboração das contas, foram consideradas como variáveis: o volume médio de água utilizado pelas empresas nos últimos anos; o preço da água, baseado nos valores já cobrados no país e de acordo com a região de atuação da companhia; as porcentagens de água captada e reutilizada; e o horizonte temporal para a cobrança efetiva pelo uso de recursos hídricos, variando conforme o nível de estresse hídrico do local onde as plantas industriais se encontram. Não foi levado em conta a possibilidade de contaminação de nascentes e seu impacto reputacional. O resultado final foi dividido pelo valor de mercado das empresas (número de ações x valor das ações).

Conforme pode-se observar pelo gráfico, o impacto da precificação da água no market cap das empresas dos setores de alimentos, bebidas, energia, mineração, papel e celulose e siderurgia do IBOVESPA, que são intensivos no uso do recurso, varia entre 0,1% e 5,3%.

As diferenças intrassetoriais se explicam, basicamente, por uma melhor gestão hídrica e investimento em tecnologias para a redução do consumo e reaproveitamento da água. O caso mais expressivo é na indústria de alimentos processados, onde a empresa menos impactada, nas condições atuais, poderia ter seu valor reduzido em 0,6% após a imposição de um valor para água, enquanto que a que sofreu abalo teve seu market cap reduzido em 5,3%.

O caso do setor de bebidas é atípico. Embora seja uma indústria que utilize consideravelmente os recursos hídricos, a empresa listada no IBOVESPA é bastante eficiente tanto no uso quanto no reuso desse ativo. E, principalmente, o seu valor de mercado é tão alto que minora a extensão do impacto da precificação.

De qualquer modo, o preço da água pode ter um custo significativo para as corporações desses e de outros setores, aumentando custos operacionais, reduzindo margens e, consequentemente, afetando o seu valor de mercado. A eficiência na utilização dos recursos hídricos e investimentos em pesquisa e desenvolvimento podem ser fatores de diferenciação consideráveis em um futuro próximo.

Precificação e mercado de água: solução inteligente ou saída mais fácil?

Como dito anteriormente, a determinação de um preço para a água se baseia no racional de que, ao se determinar um valor para esse recurso, ele seria utilizado com maior precaução, aumentando a eficiência no consumo, melhorando sua alocação e reduzindo seu uso. Contudo, ao se colocar o preço como único determinante da viabilidade de exploração de um ativo natural, todas as questões socioambientais são subjugadas pelas considerações econômicas. Dessa maneira, os valores estéticos, éticos e até mesmo, em alguns casos, espirituais dos rios, lagos e outras fontes são deixados de lado.

Em questões práticas de mercado, a criação do sistema de preços para a água e um subsequente mercado pode ter outros efeitos perniciosos. Nesse cenário, regiões abundantes em recursos hídricos e, por esse motivo, historicamente desenvolvidas, possuirão maior acesso à água a um preço mais baixo do que regiões de estresse hídrico, exatamente as que precisariam de água em valor mais baixo para se desenvolver. Ao mesmo tempo, empresas que acumularam maior capital financeiro e tecnológico, talvez até mesmo através da exploração abusiva de recursos naturais, possuirão enorme vantagem competitiva sobre companhias em desenvolvimento, seja na venda dos “créditos” para uso adicional de certos ativos quanto na obtenção desses ativos.

É muito improvável que lançando mão apenas de artifícios da mesma natureza daqueles que levaram à contínua depredação dos recursos naturais é que o problema do uso excessivo desses recursos seja resolvido. Faz-se necessária uma profunda revisão da questão do hiperconsumo e da ideia de desenvolvimento ilimitado, não condizente com um planeta de recursos finitos, o que envolve uma mudança de cultura e educação importantes. Além disso, é vital a criação de instrumentos que tragam considerações éticas, morais e estéticas para a determinação dos uso dos recursos naturais, incluindo a imposição de limites, definidos após extensa análise dos impactos em comunidades locais, fauna e flora.
A solução deve ir além dos simples incentivos econômicos que têm se provado, em sua maioria, insuficientes.

* Fred Seifert é economista pela UFRJ, consultor da SITAWI – Finanças do Bem desde agosto de 2011 e vencedor do Prêmio Itaú de Finanças Sustentáveis 2012 (fseifert@sitawi.net | www.sitawi.net).

** Publicado originalmente no site Ideia Sustentável.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Lições de um verão escaldante

Por André Trigueiro* , 10/2/2014 - 11h15

Represa Jaguari, que faz parte do Sistema Cantareira, em Jacareí (SP), que está mais de 8 metros abaixo do seu nível de vazão devido à falta de chuvas. 
Foto: Nilton Cardin/Sigmapress/Estadão Conteúdo

Este verão ainda nem acabou, mas já marcou seu lugar na História. Não apenas por ser dos mais quentes, mas por revelar o quanto ainda precisamos fazer para lidar melhor com os chamados “eventos extremos”. Vejamos algumas situações:
  1. O verão mais quente dos últimos 71 anos no Brasil e as ondas de frio recorde no hemisfério norte podem ser fenômenos climáticos mais frequentes e intensos daqui para frente. É o que apontam os relatórios recentes do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU). Convém conhecer melhor esses estudos e incorporá-los ao planejamento estratégico dos países.
  2. Segundo o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), das 10 temperaturas mais quentes registradas no mundo no dia 31/12/2013 em todas as 4.232 estações meteorológicas acessadas pelo INPE, 9 aconteceram aqui Brasil : Joinville (SC) apareceu no topo do ranking com sensação térmica de 57ºC. O Rio de Janeiro ficou em segundo com 51ºC. Estamos efetivamente inseridos na geografia dos eventos extremos e essa não é uma boa notícia. Importa fazer chegar essa informação aos tomadores de decisão.
  3. Desde 2009, todos os picos de consumo de energia no Brasil vêm acontecendo na parte da tarde (entre 14h39 e 15h41) e não mais no início da noite. Essa mudança de padrão é atribuída ao uso intensivo de aparelhos de ar-condicionado e ventiladores para enfrentar o calor no momento mais quente do dia. Como boa parte desses equipamentos desperdiça energia, é preciso exigir dos fabricantes padrões mais elevados de eficiência desses e outros produtos, que precisam ser certificados de acordo com os mais rigorosos protocolos. Não fazer isso significa premiar o desperdício.
  4. Verão de calor intenso combinado com falta de chuva ameaça o abastecimento de água nas cidades e a produção de energia a partir das hidrelétricas. Quando o nível dos reservatórios cai, as companhias de abastecimento oferecem descontos para quem economiza água e organizam racionamentos escalonados. É o que se espera delas. Já no setor elétrico, “economia” e “racionamento” de energia são palavrões. Desde o apagão de 2001, sucessivos governos se esmeram em garantir toda a energia de que a população necessita, sem qualquer orientação em favor do consumo consciente ou da eficiência energética. Fontes do governo me confirmaram que o entendimento prevalente é o de que ações nesse sentido poderiam ser confundidas como sinais de fraqueza de quem não consegue eliminar por completo o risco de apagões e que, por isso, “pede ajuda à população”. Um absurdo completo.
  5. Diversificar a matriz energética é algo importante e urgente. Mas o Brasil ainda derrapa na execução de projetos. É o que o acontece, por exemplo, com a energia do vento. O país já soma 144 parques eólicos prontos, mas 48 deles não estão ainda interligados ao sistema por falta de linhas de transmissão. Seriam 1.265 megawatts a mais, o suficiente para abastecer Salvador durante um mês. Segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica, 12 destes parques entram em operação este mês e outros 16 em março. Até lá, nos viramos com o que temos. Em relação ao futuro, a própria ANEEL admite que dos 42.750 MW de projetos outorgados de várias fontes (hidrelétricas, térmicas, eólicas) para entrar em operação entre 2014 e 2020, 6.455,1 MW (15% do total) simplesmente não têm previsão para entrar em operação por problemas diversos. Esses projetos que ninguém sabe dizer quando estarão concluídos produziriam energia para quase 26 milhões de pessoas.
  6. Já se foi o tempo em que os reservatórios cheios de água garantiam o consumo de energia do país por até três anos seguidos sem chuvas. Hoje isso não passa de 5 meses. Desde a década de 1990 tem sido mais fácil licenciar e construir hidrelétricas sem barragens, com menos áreas alagadas e impactos ambientais. Entretanto, sem novos reservatórios de grande porte, o Brasil perdeu a capacidade de estocar água da chuva como fazia antes. Ficamos mais vulneráveis e abrimos caminho para as fontes sujas, que são mais caras e poluentes. Neste verão sem chuvas, o ONS autorizou a compra de 11.500 MW de energia das termelétricas, que é quase o que produz uma Itaipu (14.000 MW). Pergunta-se: sujar desse jeito a matriz energética seria a única alternativa que temos para compensar a perda dos reservatórios? Não teríamos outras opções menos impactantes para o bolso e o meio ambiente?
  7. No país campeão mundial de água doce, a hidroeletricidade continua sendo uma vantagem estratégica. Mesmo não sendo mais possível construir usinas com grandes reservatórios por conta dos impactos ambientais, o potencial estimado de produção é de 250 mil megawatts. Hoje exploramos apenas um terço disso (80 mil MW). O horizonte de investimentos aponta para as bacias hidrográficas da Região Amazônica. Um relatório da Coppe/UFRJ financiado pelo Banco Mundial indica que as maiores usinas hidrelétricas em construção hoje no país (Jirau, Santo Antônio e Belo Monte) podem não produzir toda a energia prevista porque foram planejadas levando-se em conta a média das chuvas das últimas décadas. Só que o padrão de chuvas está mudando. Já não está na hora dos tomadores de decisão levarem mais a sério esses estudos que medem a mudança do ciclo das chuvas?
  8. Há quase dois anos o Brasil decidiu acertadamente regulamentar a microgeração de energia, ou seja, deu sinal verde para que qualquer cidadão pudesse produzir energia em pequena escala, desde que de fonte limpa e renovável, interligado à rede de distribuição. No final do mês, a conta de luz traria em valores monetários a diferença entre o que o cidadão gerou para a rede e o que consumiu da rede. Dependendo do que for gerado, é possível obter excelentes descontos ou até não pagar mais a tarifa de luz. A intenção da medida era estimular as pessoas a participarem ativamente da geração de energia reduzindo os custos do governo com grandes usinas e linhas de transmissão. Só que os Estados decidiram cobrar ICMS sobre essa energia gerada a partir do esforço de cada cidadão. Apenas Minas Gerais e Tocantins abriram mão desse imposto abusivo e imoral. Dependendo da distribuidora de energia, cobram-se ainda PIS e COFINS. É assim que se mata uma boa ideia.
  9. Precisamos incorporar ao planejamento urbano o conceito de “cidade resiliente”, ou seja, aquela que se protege de maneira inteligente das mudanças climáticas. É a agenda da “adaptação”. Se as mudanças climáticas já estão ocorrendo, é preciso prevenir tragédias e desastres com investimentos pontuais em setores estratégicos. O desconforto térmico causado por temperaturas elevadas pode ser atenuado com mais áreas verdes, menos “ilhas de calor”, mais áreas disponíveis para o banho seguro com a despoluição de praias/rios e lagoas, permissão para o uso de roupas mais leves em ambientes onde isso normalmente não é possível (repartições públicas, por exemplo) e estímulos a construções sustentáveis (greenbuilding) nais quais se explore ao máximo sistemas de ventilação cruzada, telhados verdes e outras técnicas que atenuam o desconforto térmico.
  10. Eventos extremos como esse merecem respostas rápidas das autoridades. É preciso definir novos protocolos de emergência quando a temperatura subir muito, orientando a população a eventualmente não sair de casa em certos horários ou mesmo dispensando a necessidade de seguir para o trabalho. A sensação térmica de aproximadamente 50ºC levou a Secretaria de Educação de Santa Catarina a adiar o início das aulas nesta semana de fevereiro em vários municípios. Diversos órgãos públicos pelo Brasil já dispensaram o uso de paletó e gravata de seus funcionários. No Rio de Janeiro, servidores municipais foram autorizados a usar bermudas até o joelho. O benefício alcançou também os motoristas de táxi. No caso dos motoristas de ônibus, a liberação depende de cada empresa. No futebol, a parada técnica para hidratação dos jogadores é respeitada em alguns campeonatos estaduais. No Rio, entretanto, isso não é o suficiente para aplacar o desconforto dos jogadores que disputam partidas no estádio de Moça Bonita, em Bangu (um dos lugares mais quentes do Brasil) às 17h, horário de verão. Como se vê, precisamos avançar muito na direção de uma sociedade que responda com inteligência aos chamados eventos extremos.


* André Trigueiro é jornalista com pós-graduação em Gestão Ambiental pela Coppe-UFRJ onde hoje leciona a disciplina geopolítica ambiental, professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC-RJ, autor do livro Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em Transformação, coordenador editorial e um dos autores dos livros Meio Ambiente no Século XXI, e Espiritismo e Ecologia, lançado na Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro, pela Editora FEB, em 2009. É editor chefe do programa Cidades e Soluções, da Globo News. É também comentarista da Rádio CBN e colaborador voluntário da Rádio Rio de Janeiro.
** Publicado originalmente no site Mundo Sustentável.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Escolas não estão preparadas para o “ensino do século 21”, diz pesquisador

por Redação do Blog da Educação

A maior parte das escolas de todo o mundo parou no tempo e ainda não se adequou aos desafios do século 21. É o que diz a pesquisa de David Albury, especialista da Global Education Leaders’ Program – Gelp. Para ele, enquanto a sociedade se desenvolve e depende cada vez mais de novas tecnologias, as instituições de ensino parecem não saber como acompanhar essas transformações e sofrem para se comunicar com os alunos. Para tal constatação, o pesquisador reuniu 10 países, entre eles o Brasil, e avaliou a implantação de um sistema educacional adequado aos conhecimentos, necessidades e habilidades requeridos para os dias atuais.

Para o estudioso, embora já existam exemplos de escolas adotando novas metodologias de ensino, ainda não é possível apontar um caminho certo a seguir, nem tampouco calcular em quanto tempo o mundo adotará a chamada “educação para o século 21″, capaz de conquistar e atrair os estudantes e de proporcionar, de fato, um ensino de qualidade aplicado à vida adulta. Como exemplo do lapso entre o que o mercado quer dos jovens recém-formados e o que eles aprendem nas escolas, Albury cita alguns dos pré-requisitos que ainda não entraram nas grades curriculares, como a capacidade de trabalhar em equipe, de solucionar problemas, de se comunicar bem, além da criatividade e do empreendedorismo.

A pesquisa reforçou a adoção de um ensino mais personalizado, com um currículo que atenda ao perfil, aos problemas, às necessidades e aos interesses dos alunos. Albury também defendeu o uso das novas tecnologias, mas com cuidado. “A tecnologia, embora fundamental, não é tudo em uma instituição de ensino”, disse. Ao apresentar uma análise dos desafios e obstáculos com os quais os educadores se deparam, o estudioso não culpou os alunos pela falta de interesse nos estudos. “Não são os alunos de hoje que são desengajados. Nós é que não soubemos engajá-los a aprender”, completou.

Para identificar soluções referentes aos inúmeros problemas que a educação, no mundo todo, enfrenta, a equipe de Albury tem percorrido diversos países em busca de instituições de ensino que tenham adotado experiências inovadoras e bem-sucedidas. A ideia é fazer com que essas experiências possam servir de exemplo tanto para países ricos quanto para países em desenvolvimento, implantando aos poucos projetos pilotos desses novos modelos de educação. Entretanto, ainda será preciso percorrer um longo caminho até que se alcance os mecanismos capazes de serem disseminados e implantados em escalas maiores. “Ainda não sabemos como testar, no modelo proposto por nós, o aprendizado dos alunos. E como vamos avaliar e capacitar os professores. O Brasil, por exemplo, levou 300 ou 200 anos para desenvolver o sistema de educação que tem hoje. Então, essa mudança não vai acontecer de uma hora para outra, vai levar anos, talvez décadas”, afirmou.

* Com informações do Portal Terra.

** Publicado originalmente no site Blog da Educação.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Relatório: Empresas não estão preparadas para crise de recursos naturais

Consultoria Carbon Trust destaca que companhias já entendem que a água e outros bens naturais estão ficando cada vez mais escassos, mas salienta que ainda são poucas as que estão transformando seus modelos de negócios

Já há muito tempo é sabido que os recursos do planeta são finitos e que o desafio de se adequar a uma nova realidade de queda na oferta de matéria-prima e de possíveis interrupções na cadeia de suprimentos ficará cada vez maior.

Porém, essa conscientização, que já teria alcançado um nível alto entre as empresas, ainda não se traduziu em ações, e poucos são os líderes empresariais que estão enxergando a escassez de recursos como uma oportunidade e não uma crise.

Essa é uma das conclusões do relatório “Opportunities in a resource constrained world: How business is rising to the challenge” (algo como Oportunidades em um mundo de recursos escassos: Como os negócios estão enfrentando o desafio), divulgado na semana passada pela consultoria britânica Carbon Trust.

De acordo com o documento, existirá, por exemplo, uma lacuna de 40% entre as reservas de água disponíveis e a necessidade de consumo em 2030. Outros recursos, como certos minérios utilizados em produtos de alta tecnologia, ficarão escassos ainda antes, já em 2016.

“Para proteger nossa economia, nosso meio ambiente e os recursos disponíveis para as futuras gerações, precisamos que as empresas de hoje reconheçam a seriedade dessa ameaça e adaptem seus modelos de negócios”, afirmou Tom Delay, presidente da Carbon Trust.

De acordo com o documento, existirá, por exemplo, uma lacuna de 40% entre as reservas de água disponíveis e a necessidade de consumo em 2030. Outros recursos, como certos minérios utilizados em produtos de alta tecnologia, ficarão escassos ainda antes, já em 2016.

“Para proteger nossa economia, nosso meio ambiente e os recursos disponíveis para as futuras gerações, precisamos que as empresas de hoje reconheçam a seriedade dessa ameaça e adaptem seus modelos de negócios”, afirmou Tom Delay, presidente da Carbon Trust.

A consultoria entrevistou 475 companhias de cinco países e constatou que 69% delas possuem algum tipo de programa de sustentabilidade. No entanto, 40% das pesquisadas classificaram seus esforços como “reativos”, ou seja, esperam o problema surgir e depois atuam para resolvê-lo. Para piorar, apenas 5% das empresas estão confiantes na qualidade de seus programas e se consideraram líderes em sustentabilidade.

“Nosso relatório mostra que as empresas que proativamente estão colocando a sustentabilidade em suas operações têm o potencial de valorizar seus negócios e reduzir a vulnerabilidade à escassez dos recursos”, explicou Delay.

Oportunidades

Apesar de criticar a lentidão do mundo corporativo em transformar seus modelos de negócio, a maior parte do relatório é dedicada às boas práticas já existentes e que podem servir de exemplo para quem quiser explorar as oportunidades de uma economia mais sustentável.

Uma das corporações citadas é a BT, uma das maiores empresas de comunicação do planeta, presente em 170 países. Através de programas de sustentabilidade, a BT conseguiu, desde 2011, reduzir as emissões de gases do efeito estufa de suas operações em 44% e de sua cadeia de fornecedores em 15%, e diminuiu em 40% a sua produção de resíduos. Ao mesmo tempo, registrou uma queda de 14% em seus custos operacionais.

Outro destaque é a Whitebread, maior cadeia de hotéis e restaurantes do Reino Unido, que emprega 43 mil pessoas e atende mais de 22 milhões de clientes por mês em 2.500 estabelecimentos.

Segundo a Carbon trust, a iniciativa “Good Together” (algo como Bons Juntos) da Whitebread promoveu a redução de 23% nas emissões, 22% no consumo de água e aumentou em 93% a reciclagem de resíduos. Mesmo com os investimentos necessários para realizar essas ações, os lucros da empresa em 2013 aumentaram 14%.
“Ao se diferenciarem da prática comum no mercado, as empresas mais sustentáveis conseguem aumentar sua competitividade e fortalecer sua marca”, afirma o relatório.

A Carbon Trust acredita que, ao buscarem ser mais eficientes, as companhias estão se posicionando de forma vantajosa em um planeta em que os recursos estão ficando escassos. Assim, podem tirar proveito das oportunidades que outras empresas não enxergam ou não têm condições de atender.

“A grande mensagem do relatório é que é benéfico de várias maneiras para as empresas se tornarem mais resilientes aos problemas ambientais e climáticos. Melhorar a eficiência no uso de recursos é bom para a reputação e se reflete de forma quase automática em ganhos reais”, concluiu Delay.

* Publicado originalmente no site CarbonoBrasil.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

“As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado”

“Nos aquíferos é que se encontra reservada a maior parte da água do mundo — 97% das águas doces e líquidas do planeta. Quando vemos problemas de estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas, podemos supor que é no recurso subterrâneo que está a possibilidade de superação”, destaca o hidrogeólogo Ricardo Hirata.

“O usuário não tem ideia dos custos de extração das águas e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de controle afetam a sua extração. Ele está pagando mais pela água sem saber que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que está provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com grandes usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um conflito não percebido pela população, que não tem ideia de causa e efeito nesse ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma percepção bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas urbanas. As empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam economizar muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem implementadas em suas captações”, aponta o hidrogeólogo Ricardo Hirata.

O pesquisador lidera o Centro de Pesquisas de Água Subterrânea – CEPAS, instituição vinculada à Universidade de São Paulo – USP e que há mais de dez anos investiga os índices de nitrato em águas subterrâneas no estado de São Paulo. “O nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo”, enfatiza Hirata. As principais fontes de contaminação são o esgoto urbano, proveniente de fossas sépticas ou negras ou mesmo do vazamento das redes de saneamento que sofrem com a falta de manutenção, e o uso excessivo de fertilizantes nitrogenados no meio rural. As pesquisas do CEPAS vêm demonstrando aumento na concentração de nitrato nas águas subterrâneas, mesmo naquelas áreas em que há redes antigas de saneamento — o que é indicativo da existência de vazamentos nos canos de esgoto.

“As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas sejam utilizadas por mais de 35-40% da população brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70% de seus municípios são total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com águas de aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte, onde os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto – SP, Porto Alegre – RS, Manaus – AM, Natal – RN, Brasília – DF, São José dos Campos – SP, Jales – SP, Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas”, ressalta o pesquisador.

     Foto: bloggeografiaf

Ricardo Cesar Aoki Hirata é diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas – CEPAS da Universidade de São Paulo – USP e professor do Instituto de Geociências da mesma instituição. Possui graduação em Geologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, mestrado e doutorado em Geociências com área de concentração em Recursos Minerais e Hidrogeologia pela USP e pós-doutorado pela Universidade de Waterloo, no Canadá. É consultor da UNESCO e da International Atomic Energy Agency – IAEA, tendo atuado também como consultor da Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS/OMS.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Que relação há exatamente entre os índices de nitrato e a contaminação de aquíferos por infiltração de esgoto urbano?

Ricardo Hirata - O nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo. As suas características de alta mobilidade e grande persistência nas águas subterrâneas fazem com que plumas de nitrato sejam encontradas em quase todos os aquíferos urbanos no Brasil. Nesse caso, a principal fonte é o esgoto proveniente de fossas sépticas ou negras ou mesmo do vazamento da rede de esgoto, que carecem de manutenção.

IHU On-Line – Este cenário é também verificado no meio rural? Qual a incidência de contaminação das águas por fertilizantes e agrotóxicos?

Ricardo Hirata - O nitrato também é bastante comum no meio rural, pois em áreas agrícolas o excesso de fertilizantes nitrogenados, que é bastante comum, acaba chegando até o aquífero, contaminando-o. Neste caso, não temos muitos estudos no Brasil e, portanto, temos ainda pouca ideia de sua extensão. Mas, a partir da experiência em outros países, é de se acreditar que haja problemas no Brasil, atingindo-se grandes áreas, sobretudo pela sua grande vocação agrícola, de alta técnica.

IHU On-Line – Quais são os principais riscos da ingestão de nitrato para a saúde humana?

Ricardo Hirata – O nitrato é um contaminante de média toxicidade. Assim, em concentrações acima de 10mg/L (como nitrogênio-nitrato; e 45mg/L, como nitrato), pode provocar a meta-hemoglobinemia, que afeta bebês. Há igualmente suspeitas de que, em concentrações bastante menores, ele também seja carcinogênico [que pode provocar câncer].

IHU On-Line – Que outros contaminantes nocivos à saúde humana são encontrados nas águas subterrâneas? Que riscos provocam?

Ricardo Hirata - Há uma infinidade de compostos que podem, em concentrações excessivas, provocar problemas à saúde humana. Um grupo de contaminantes bastante preocupantes são os solventes sintéticos clorados. Esses apresentam grande toxicidade e são bastante persistentes e móveis em aquíferos. O interessante é que, devido a sua grande volatilidade, esses contaminantes não têm a mesma importância para as águas superficiais. Isso faz com que os órgãos de controle ambiental do Brasil não deem atenção a eles em programas de monitoramento regular nas águas subterrâneas. Metais pesados formam outro grupo bem importante e nocivo às águas subterrâneas, embora eles não apresentem a mesma mobilidade que o nitrato ou os solventes clorados nos aquíferos.

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Ricardo Hirata. Foto: arquivo pessoal
IHU On-Line – Nesta perspectiva, quais foram os principais resultados encontrados pelas pesquisas realizadas pelo CEPAS?
Ricardo Hirata - Os resultados que o CEPAS tem acumulado ao longo desses 10 anos no estudo do nitrato fez concluir que esse contaminante tem sido detectado cada vez mais no estado de São Paulo, permitindo afirmar que todas as cidades paulistas apresentam, em variados graus, problemas com esse contaminante. A rede oficial de monitoramento do estado, operada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB, tem inclusive mostrado aumentos nas concentrações desse contaminante em seus poços, corroborando com os resultados de nossas pesquisas.

Outra importante constatação que não era considerada pelos gestores ambientais é que grandes plumas de nitrato estão sendo detectadas em aquíferos urbanos, mesmo que a área já tenha há muito tempo rede de esgoto. Embora a existência de rede de esgoto diminua substancialmente a carga contaminante ao subsolo (comparativamente a fossas sépticas e negras), a falta de manutenção da rede pública e os seus vazamentos são suficientes para criar importantes plumas contaminantes. O que preocupa nesse cenário é que simulações em computador feitas pelo nosso grupo com as plumas observadas em cidades (mesmo com rede de esgoto) têm mostrado que estas levariam, caso cessadas completamente as fugas de esgoto, mais de 60 anos para ter os seus aquíferos novamente limpos, mostrando claramente que evitar o problema é a melhor e mais barata solução para o nitrato. Neste caso, o que se conclui é que a rede de esgoto moderna, com tubos plásticos, deve anteceder a qualquer ocupação do terreno urbano.
IHU On-Line – Estes resultados servem de parâmetro para outras realidades regionais e/ou para um cenário nacional?

Ricardo Hirata - Sim, a presença de nitrato em outros aquíferos fora do estado de São Paulo deve ocorrer, e até em maiores proporções, pois as cidades possuem menor cobertura de rede de esgoto comparativamente às cidades paulistanas. O melhor exemplo disso é Natal – RN, cidade abençoada pela excelente qualidade de suas águas subterrâneas, mas onde a concessionária tem dificuldades de fornecer água sem nitrato (e potável) à sua população. A combinação entre poços mal localizados (dentro da malha urbana densa) e a falta histórica de rede de esgoto tem criado os sérios problemas lá observados.

IHU On-Line – Há fiscalização sobre a potabilidade da água de poços tubulares (artesianos)?

Ricardo Hirata - A legislação que controla o uso da água subterrânea é estadual e em muitos estados há mecanismos para a fiscalização da qualidade das águas extraídas por poços tubulares. O problema é que essas leis são pouco seguidas, foram daqueles instrumentos que não “pegaram” ainda. O usuário não vê importância na regularização de seu poço e nos benefícios que isso pode trazer para ele e para toda a comunidade, e, por extensão, ao ambiente. De outro lado, o estado não tem oferecido nenhum dos serviços pelos quais ele é responsável, como o de implementar a sustentabilidade do recurso, fazendo com que o controle evite a contaminação e os problemas de superexploração.

A falta de um controle das demandas de água pode levar a importantes problemas, muitas vezes desconhecidos pelos usuários, incluindo:

a) redução dos níveis aquíferos, encarecendo o bombeamento das águas subterrâneas pelo aumento do consumo de energia ou necessidade de aprofundamento do poço;

b) redução dos fluxos de base a corpos de água superficial, como rios e lagos, causando problemas de vazão durante, sobretudo, as estiagens;

c) indução de contaminação e salinização das águas;

d) indução de problemas geotécnicos, como afundamentos do terreno;

e) exaustão do recurso e sua perda.

Outra área de pesquisa do CEPAS está concentrada na gestão dos recursos hídricos subterrâneos e tem concluído que o usuário não tem ideia dos custos de extração das águas e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de controle afetam a sua extração. O usuário está pagando mais pela água sem saber que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que está provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com grandes usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um conflito não percebido pela população, que não tem ideia de causa e efeito nesse ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma percepção bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas urbanas. As empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam economizar muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem implementadas em suas captações.

IHU On-Line – Qual é a relevância dos poços tubulares para o abastecimento de água no Brasil?

Ricardo Hirata - Muito maior que a percepção que o brasileiro e seus gestores têm. As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas sejam utilizadas por mais de 35-40% da população brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70% de seus municípios são total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com águas de aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte, onde os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto – SP, Porto Alegre – RS, Manaus – AM, Natal – RN, Brasília – DF, São José dos Campos – SP, Jales – SP, Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas. Mesmo na Bacia do Alto Tietê, as águas subterrâneas são o quarto mais importante manancial, fornecendo mais de 10 metros cúbicos por segundo de água, superando os outros cinco mananciais superficiais operados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP. Na agricultura, o censo agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE computa mais de 450 mil poços tubulares (não cacimbas) em áreas rurais brasileiras.

IHU On-Line – É viável a descontaminação da água com incidência de nitrato?

Ricardo Hirata - Sim, há tecnologias, como os sistemas de osmose reversa, que são bastante caras. Há técnicas de descontaminação das águas dentro do aquífero, com a injeção de produtos que provocam a desnitrificação, mas essas técnicas estão ainda no campo da pesquisa. O que as empresas concessionárias de água têm feito é mesclar águas contaminadas com outras em que a concentração de nitrato é menor, permitindo fornecer águas não contaminadas.

IHU On-Line – O que pode ser feito para a reversão deste quadro de contaminação contínua das águas subterrâneas?

Ricardo Hirata - Um dos grandes problemas que as águas subterrâneas enfrentam é o desconhecimento de sua importância, o que leva à falta de atenção por parte dos gestores. As águas subterrâneas não estão na agenda dos governos nem do setor agrícola. De um lado há um recurso já bastante utilizado no Brasil, cujos ganhos econômicos, sociais e ambientais não são percebidos, entretanto, pela população. Isso faz com que esse recurso não seja discutido nas grandes tomadas de decisão no planejamento urbano ou mesmo rural.

De outro lado, nos aquíferos é que se encontra reservada a maior parte da água do mundo — 97% das águas doces e líquidas do planeta estão nos aquíferos. Quando vemos problemas de estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas, podemos supor que é no recurso subterrâneo que está a nossa possibilidade de superação do problema, a partir do uso conjunto e racional do recurso subterrâneo e superficial. É uma imensa caixa de água de excelente qualidade esperando para ser convenientemente aproveitada. Assim, investir no conhecimento do recurso, buscando as novas oportunidades, é imperioso para aumentar a segurança hídrica em cidades.
Um segundo ponto é que os estados, por meio de seus órgãos gestores, realmente gestionem as águas subterrâneas, fazendo com que as leis sejam de fato cumpridas, e que a população e usuários sejam informados dos benefícios e limitações que podem surgir pelo mau uso do recurso ou do solo.

IHU On-Line – As políticas públicas de saneamento e a legislação brasileira dão conta da preservação das águas e, consequentemente, da saúde humana?

Ricardo Hirata - Em parte sim, mas é importante notar que a simples presença de redes de esgoto não elimina o problema da contaminação por nitrato em áreas urbanas. Novas redes, com novos materiais, e manutenção periódica é que vão garantir a qualidade das águas. Da mesma forma, os planejadores devem levar em consideração que é importante construir redes de esgoto nas novas áreas urbanas (preferencialmente antes de sua ocupação), antecipando-se aos problemas.

Outro ponto importante é que muitos sanitaristas acreditam que se deveria fechar os poços tubulares quando a área já tenha rede de água potável. A motivação para isso é muitas vezes simplista e não leva em consideração o real papel que o abastecimento privado tem nas nossas cidades. Por exemplo, considerando-se as cidades da Bacia do Alto Tietê. A população é razoavelmente bem servida de água, mas o que os dados estatísticos oficiais esquecem é que temos mais de 10 metros cúbicos por segundo advindos de 12 mil poços privados que suplementam o abastecimento. Sem essa água, o sistema de abastecimento não daria conta e teríamos sérios problemas. O mesmo é para Recife, onde mais de 13 mil poços (a maioria privada) suplementam o abastecimento da Companhia Pernambucana de Saneamento – COMPESA e fazem a diferença, sobretudo em períodos de estiagem como o que ocorreu recentemente.

Adicionalmente, deve-se considerar a economia que as águas subterrâneas trazem para o usuário. Um poço bem operado em um aquífero produtivo geralmente fornece água com menores custos, comparativamente às águas das concessionárias, e muitas vezes com qualidade superior. Vide as águas minerais. Todas elas são subterrâneas!


* Publicado originalmente no site IHU On-Line.

A raiz última da crise ecológica: a ruptura da re-ligação universal

por Leonardo Boff  - 12-fev-2014

Há muitas causas que levaram à atual crise ecológica. Mas temos que chegar à última: a rupturapermanente da re-ligação básica que o  ser humano introdiziu, alimentou e perpetuou com o conjunto do universo e com seu Criador.  
         Tocamos aqui numa dimensão profundamente misteriosa e trágica da história humana e universal. A tradição judeo-cristã chama a essa frustração fundamental de pecado do mundo e a teologia no seguimento de Santo Agostinho que inventou esta expressão, de pecado original ou queda original. O original aqui não não tem nada a ver com as origens históricas deste anti-fenômeno, portanto, ao ontem. Mas ao que é originário no ser humano, ao que afeta seu fundamento e sentido radical de ser, portanto, ao agora de sua condição humana.  
         Pecado também não pode ser reduzido a uma mera dimensão moral ou a um ato falho do ser humano. Temos a ver com uma atitude globalizadora, portanto, com uma subversão de todas as relações nas quais ele está inserido. Trata-se de uma dimensão ontológica que concerne ao ser humano, entendido como um nó de relações. Esse nó se encontra distorcido e viciado, prejudicando todos os tipos de relação.
          Importa enfatizar que o pecado original é uma interpretação de uma experiência  fundamental, uma resposta a um enigma desafiante. Por exemplo,  existe o esplendor de uma cerejeira em flor no Japão e simultaneamente um tsunami em Fukushima que tudo arrasa. Existe uma Madre Teresa de Calcutá que salva moribundos das ruas e um Hitler que envia seis milhões de judeus para as câmaras de gás. Por que esta contradição? Os filósofos e os teólogos continuam quebrando a  cabeça para encontrar  uma resposta. E até hoje não a encontraram.
         Sem entrar nas muitas possíveis interpretações,  assumimos uma, pois  ganha mais e mais o consenso dos pensadores religiosos: a imperfeição como momento do processo evolucionário. Deus não criou o universo pronto uma vez por todas, um acontecimento passado, rotundamente perfeito.  Senão deslanchou um processo em aberto e perfectível que fará uma caminhada  rumo a formas cada vez mais complexas, sutis e perfeitas. Esperamos que um dia chegará a seu ponto Ômega.
         A imperfeição não é um defeito mas uma marca da evolução. Ela não traduz o desígnio último de Deus sobre sua criação, mas um momento dentro de um imenso processo. O paraíso terrestre não significa saudade de uma idade de ouro perdida, mas a promessa de um futuro que ainda virá. A primeira página das Escrituras, na verdade, é a última. Vem no começo como uma espécie de maquete do futuro, para que os leitoros/as se encham de esperança acerca do fim bom de toda a criação.
         São Paulo via a condição decaída da criação como um submetimendo “à vaidade” ((mataiótes), não por causa do ser humano, mas por causa de Deus mesmo. O sentido exegético de “vaidade” aponta para o processo de amadurecimento. A natureza não alcançou ainda sua maturidade. Por isso na fase atual se encontra ainda longe da meta a ser alcançada. Daí que a “criação inteira geme até o presente e sofre dores de parto”( Rm 8,22). O ser humano participa deste processo de amadurecimento, gemendo também (Rm 8,23). A criação inteira espera ansiosa pelo pleno amadurecimento  dos filhos e filhas de Deus. Pois entre eles e resto da criação vigora uma profunda interdependência e re-ligação Quando isso ocorrer, a criação chega também a sua maturidade, pois, como diz Paulo, “participará da gloriosa liberdade dos filhos e filhas de Deus” (Cf. Rm 8, 20).
         Então se realiza o desígnio terminal de Deus. Somente agora Deus poderá proferir a esperada palavra: “e viu que tudo era bom”. Por ora, estas palavras são profecias e promessas para o futuro, porque nem tudo é bom. Bem disse o filósofo Ernst Bloch, o do princípio esperança: “o gênesis está no fim e não no começo”. O atraso do ser humano no seu amadurecimento implica no atraso da criação. Seu avanço implica um avanço da totalidade. Ele pode ser um instrumento de libertação ou de emperramento do processo  evolucionário.
         É aqui que reside o drama: evolução quando chega ao nível humano, alcança o patamar da consciência e da  liberdade. O ser humano foi criado criador. Pode intervir na natureza para o bem, cuidando dela ou para o mal devastando-a. Ele começou, quem sabe, desde o surgimento do homo habilis há 2,7 milhões de anos, quando ele criou o instrumento com o qual intervinha sem respeitar nos ritmos da natureza. No começo podia ser apenas um ato. Mas a repetição criou uma atitude de falta de cuidado. Ao invés de estar junto com as coisas, convivendo, colocou-se acima delas, dominando. E houve um crescendo  até  aos dias atuais.
         Com isso rompeu com a solidariedade natural entre todos os seres. Contradisse o designio do Criador que quis o ser humano como con-criador e que por seu gênio completasse a criação imperfeita. Este colocou-se no lugar de Deus. Sentiu-se pela força da inteligência e da vontade um pequeno “deus” e comportar-se como se fora Deus Esta é a grande ruptura com a natureza e com o Criador que subjaz à crise ecológica. O problema está no tipo de ser humano que se forjou na história, mais uma “força geofísica de destruição”(E.Wilson) que um fator de cuidado e preservação.
         A cura reside na re-ligação com todas as coisas. Não necessariamente precisa ser mais religioso, mas mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. Ele precisa voltar à Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural. E se ainda se abrir ao Criador, saciará sua sede infinita e colherá como fruto a paz.

 Leonardo Boff escreveu Opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu, Record, Rio 2009. verdade.

fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2014/02/12/a-raiz-ultima-da-crise-ecologica-a-ruptura-da-re-ligacao-universal/

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