terça-feira, 5 de outubro de 2010

O doce negócio das abelhas


Produção brasileira de mel tem forte potencial de crescimento
MIGUEL NÍTOLO


A notícia levava jeito de enredo de filmes hollywoodianos, daqueles dirigidos por Alfred Hitchcock, o mestre do suspense. Os enxames estão desaparecendo, alertava a imprensa entre 2006 e 2007, informando que apicultores americanos e europeus já haviam perdido parte das colmeias em decorrência de inexplicável sumiço das abelhas. Como se tratava de algo que, naquela oportunidade, fugia à lógica dos entendidos, o problema foi logo batizado de Distúrbio do Colapso das Colônias (DCC). É sabido que esses insetos são acometidos de um grande número de patologias, mas, naquele caso específico, ocorria um fato ainda mais desorientador: não havia corpos. As abelhas simplesmente desapareciam, um mistério que levou muitas pessoas a temer pela sorte da humanidade. Sim, porque 80% dos alimentos são produzidos graças às abelhas, que carregam os grãos de pólen e fertilizam as plantas. Sem a polinização não há sementes, e sem as sementes não há frutos, e assim a sobrevivência dos seres vivos poderia estar correndo sério risco.
Alterações do clima, disseminação de antenas de celulares, excesso de agrotóxicos, infecção por vírus, deslocamento do eixo da Terra provocado pelo tsunami devastador na Indonésia em 2004? As suspeitas recaíram logo sobre vários agentes e ainda hoje se discute o assunto. Mesmo no Brasil, que não sentiu com a mesma intensidade o problema (aqui a redução do número de enxames resume-se ao registro de ocorrências pontuais), o DCC tem sido motivo de estudos. “Somos levados a dizer que as perdas estão mais centradas no hemisfério norte, certamente porque, abaixo da linha do equador, as pesquisas sobre essa temática andam devagar”, diz a professora Cristina Lorenzon, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ela pondera que o desaparecimento se relacionou, essencialmente, à espécie Apis mellifera (a abelha do mel), a mais monitorada, explorada e fácil de estudar, mas é permitido supor que o sumiço tenha afetado outros tipos. “Porém, como não sabemos tanto sobre as outras espécies, é temerário afirmar categoricamente que elas padeceram do mesmo mal”, assinala Cristina.
Já se passaram quatro anos desde então e as notícias sobre o colapso das colônias de abelhas, curiosamente, escassearam. “Foi um surto e, como tal, passou”, adianta-se o professor Ricardo de Oliveira Orsi, da Área de Apicultura do Departamento de Produção Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Botucatu, no interior de São Paulo. Ele destaca que o Brasil passou aparentemente incólume por aquele fenômeno porque “nossas abelhas, resultantes do cruzamento natural de espécies europeias e africanas, têm maior resistência”, o que se explica, segundo a bióloga Esther Margarida Bastos, pesquisadora da Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais, pelo fato de as abelhas brasileiras africanizadas terem, em relação a outras espécies, a qualidade de produzir própolis em maior quantidade, substância resinosa coletada em várias plantas e que confere à colmeia proteção contra diversos micro-organismos. Essa resistência, contudo, “não faz frente ao uso indiscriminado de agrotóxicos e à ação de agentes poluidores da atmosfera, como os metais pesados”, ressalva a pesquisadora.

Seleção natural

Breno Magalhães Freitas, professor da Universidade Federal do Ceará, enaltece as virtudes da abelha africanizada com o argumento de que “se várias raças europeias e uma africana foram trazidas e soltas em território brasileiro e nenhuma se consolidou, apenas o produto dos cruzamentos delas, não há o que discutir”. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ph.D. em abelhas e polinização, ele sustenta que “a natureza selecionou para nós o que de melhor há para as condições do país”.
Essa vantagem da apicultura brasileira perde importância, porém, devido às deficiências do país no tocante à produção, em contraste com outras partes do mundo, onde o mel é tratado efetivamente como negócio. Apesar de vir apresentando notável crescimento nas atividades relacionadas à terra, com a adoção de técnicas modernas, o Brasil não figura na lista dos maiores do setor melífero. “Estima-se que o país esteja produzindo, anualmente, 40 mil toneladas de mel”, informa Constantino Zara Filho, presidente executivo da Associação Paulista de Apicultores Criadores de Abelhas Melíficas Europeias (Apacame). Esse número, utilizado por parcela considerável das pessoas que labutam na área, coloca os apicultores brasileiros em sexto lugar na classificação mundial.
Ainda assim, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) trabalha com outros valores. De acordo com estatísticas referentes a 2008 e divulgadas por aquela entidade, o Brasil teria respondido, naquele ano, pela produção de 38 mil toneladas, ficando em 11º lugar no ranking global – longe, portanto, dos grandes do ramo, como a China, com 367,2 mil toneladas, a Turquia, com 81,3 mil e a Argentina, com 81 mil. E atrás até da sofrida Etiópia, que produz 44 mil toneladas e ocupa o nono posto, entre os maiores produtores de mel, assim como do Irã, na décima posição, com 36 mil toneladas.
A distância que separa a apicultura do Brasil da indústria melífera de outros países pode ser medida, ainda, pela quantidade de enxames. “Nesse quesito, ocupamos o 21º lugar, com 850 mil colmeias”, relata Orsi. Baseado no mesmo levantamento publicado dois anos atrás pela FAO, ele destaca que a China tem 8,8 milhões de colmeias, a Turquia, 4,9 milhões, a Etiópia, 4,8 milhões, o Irã, 3,5 milhões, a Rússia, 3,1 milhões e a Argentina, 3 milhões, apenas para citar os seis primeiros desse ranking. “Perdemos até para a Tanzânia (2,7 milhões) e o Quênia (2,5 milhões)”, destaca o professor da Unesp.

Pequenos produtores

Existem alguns pontos, porém, que precisam ser esclarecidos. Até recentemente, esse ramo empresarial resumia-se, em boa dose, a um tipo de investida sem compromisso, em que a maior parcela dos donos de colmeias, em especial pequenos ruralistas e mesmo pessoas desprovidas de terra, apenas viam no negócio com o mel um jeitinho de engordar seus ganhos. O professor Darcet Costa Souza, do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), lembra que os apicultores ainda são, na maioria dos casos, produtores com menos de cem colmeias. Apesar disso, ainda que a situação não tenha mudado radicalmente, é inegável que nos últimos anos o setor vem experimentando mudanças nunca antes observadas.
“Podemos mesmo afirmar que, a despeito de todos os senões, a apicultura brasileira está atravessando uma boa fase”, ressalta Souza. Ele relata que o preço do mel está atraente, pois há um déficit do produto no mercado mundial e os grandes fornecedores internacionais estão amargando dificuldades em razão do DCC. “O segmento tem crescido e ainda tem muito a se expandir devido, também, ao grande potencial da flora apícola disponível no país”, destaca Paula Ornellas Belo Fagnani, analista do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP). Essas afirmações são confirmadas por Zara Filho, da Apacame, segundo o qual o avanço da apicultura, embora lento, ocorre em todo o território brasileiro. “O comparecimento de mais de 2,4 mil produtores ao 18º Congresso Brasileiro de Apicultura e ao 4º Congresso Brasileiro de Meliponicultura, realizados em Cuiabá em maio passado, não deixa dúvidas quanto a isso”, acentua.
É notório que, de uns anos para cá, a produção de mel começou a animar as pessoas envolvidas com a atividade e, ao mesmo tempo, a despertar o interesse de gente de fora do segmento. Porém, foi somente a partir de 2001, quando a produção anual era de pouco mais de 20 mil toneladas, que a apicultura brasileira ganhou maior expressão. “Naquela oportunidade, a China desandou a perder mercado por conta de problemas relacionados com a qualidade do mel que exportava”, explica Orsi. “Diante disso, os grandes centros consumidores abriram os braços para outros fornecedores. Era a brecha que faltava ao Brasil. Então, começamos a notar maior empenho por parte do apicultor brasileiro.”
O professor da Unesp recorda que graças a esses eventos o preço da lata de mel de 25 quilos, que vinha sendo comercializada a R$ 80, saltou para R$ 250, aproximadamente, cotação que se manteve por algum tempo e depois recuou, mas teve o mérito de funcionar como um tônico para o setor. “Em 2000, o Brasil importou 290 toneladas de mel, volume que caiu para somente 2 toneladas três anos mais tarde”, esclarece Orsi, acrescentando que, nove anos atrás, os apicultores brasileiros exportaram 270 toneladas, total que cravou em 20 mil toneladas dois anos depois. Hoje, segundo a Apacame, são 350 mil as pessoas envolvidas nessa atividade no país. Vale frisar que, mesmo perdendo mercado, a China vendeu ao exterior, em 2001, perto de 88 mil toneladas.
“O Brasil tem potencial para produzir mais de 200 mil toneladas anuais de mel e, assim, encostar na China”, diz Zara Filho. Ele afirma que, se os empresários do ramo investissem no aprimoramento do manejo, “poderíamos dobrar a oferta sem grandes esforços com o mesmo número de apicultores”. Há porém uma série de problemas que, segundo o professor Darcet Souza, da UFPI, está no próprio campo, e se relaciona à gestão das atividades nos apiários. “Embora nossa produção tenha crescido muito nos últimos anos, essa expansão aconteceu mais em função do aumento da base produtiva. O número de colmeias e de apicultores se elevou, mas a produtividade, não”, alerta. Jerri Zanusso, professor adjunto do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), complementa: “A média nacional gira ao redor de 15 quilos de mel por colmeia ao ano, o que é muito pouco”.
É de espantar, assim, que a prática e os meios de produção de mel amplamente difundidos mundo afora não tenham, ainda, sensibilizado o apicultor brasileiro. Felizmente, as exceções a esse quadro são cada vez mais numerosas, já que tem crescido o número de produtores que tocam seus negócios em consonância com modernos padrões técnicos. Os especialistas ressaltam que se o apicultor deseja realmente obter algum resultado econômico terá, antes, de aprofundar os estudos na área e buscar capacitação profissional. “É essencial preparar o enxame para o início da florada, trabalhar com rainhas melhoradas geneticamente e evitar a saturação de áreas com o excesso de colmeias”, alerta Orsi, da Unesp. Da mesma forma, em regiões de condições climáticas rigorosas, com frio ou seca prolongados, os apicultores devem dar atenção à alimentação artificial, que ajuda o enxame a poupar energia e a manter a rainha com postura, não enfraquecendo a família.
Outra exigência da atividade, afirma o professor Zanusso, é aplicar em equipamentos. Segundo ele, o apicultor investe pouco, ficando apenas com o básico. Além disso, muitos apicultores só extraem o mel. “Eles poderiam”, lembra Zanusso, “explorar comercialmente o pólen, a própolis, a cera, a geleia real e outros produtos transformados.” E, na maior parte dos casos, diz, “trabalham isolados, longe de associações e cooperativas”. Dejair Message, professor de apicultura aposentado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), completa o raciocínio com o argumento de que tais modelos organizacionais seriam o meio mais indicado para dar retorno superior aos negócios. “Falta ao setor essa visão de cultura associativa e cooperativista”, sustenta.
Paula Ornellas, do Sebrae paulista, observa que, de maneira geral, os produtores investem pouco porque não têm na apicultura sua atividade principal de renda, “mas quando eles se organizam em grupos é notória a mudança de comportamento”. Segundo ela, “eles precisam se unir para acessar o mercado, pois sozinhos não conseguirão obter volumes suficientes para atender aos clientes”. Além disso, salienta ela, os agricultores formalmente organizados por meio de associações e cooperativas podem, hoje, tirar proveito de políticas públicas favoráveis, tais como “compras governamentais, fornecimento da produção à merenda escolar, facilidade de captação de recursos e participação em projetos do Ministério do Desenvolvimento Agrário, por exemplo”.
A distribuição de mel na merenda escolar começa, mesmo que vagarosamente, a se transformar num interessante filão para os apicultores, e os exemplos surgem de todos os lados. Agora mesmo se noticia que os municípios sergipanos de Canindé de São Francisco, Lagarto, Poço Redondo, Poço Verde e Porto da Folha estão distribuindo o produto aos estudantes de suas escolas na hora do lanche.

Demanda fraca

Há um fato que não pode ser omitido porque, certamente, tem sua cota de responsabilidade na fragilidade do setor: a baixa demanda nacional de mel. O consumo per capita no Brasil é de somente 120 gramas do produto ao ano, praticamente o mesmo da Argentina, da China e do Uruguai (números de 2001), volume que contrasta com os 3,4 quilos da República Centro-Africana, 1,8 quilo da Nova Zelândia, 1,7 quilo de Angola, 1,5 quilo da Grécia, 1,4 quilo da Áustria, 1,3 quilo da Suíça, 1,1 quilo da Alemanha e 1 quilo da Turquia e da Espanha.
As pessoas não se deram conta, ainda, das qualidades do mel como alimento rico, por exemplo, em glicose e frutose, que são fontes de energia, nem de que ele propicia o equilíbrio do organismo. Parte da população não tem o costume de consumi-lo e habituou-se a considerá-lo dispensável. Outros têm informações erradas sobre suas propriedades, segundo as quais o produto é calórico, eleva a taxa de colesterol e engorda. “E há aquela parcela que não vê no mel um alimento, mas um remédio e, como tal, recomendado apenas para o combate à tosse, rouquidão e irritação da garganta, nada mais”, lastima o professor Orsi.
É evidente, assim, que alguma coisa terá de ser feita para esclarecer a população. “Os apicultores não investem quase nada na imagem do mel, e isso diz respeito, essencialmente, à embalagem e ao rótulo”, lembra o professor Jerri Zanusso, da UFPel. “Na realidade, o setor em si aplica pouco em propaganda. Raros são os casos em que o mel aparece em catálogos de produtos das redes de supermercados e mais incomuns ainda os exemplos de degustação ou a distribuição de material informativo em pontos de venda.”
Isso pode estar começando a mudar. Durante a realização do congresso de apicultura na capital de Mato Grosso, que reuniu 2.217 congressistas e 24 mil visitantes, foi feito o lançamento de uma campanha de incentivo ao consumo do mel com a chamada “Meu dia pede mel”, peça elaborada pela Confederação Brasileira de Apicultura em parceria com o Sebrae e a Fundação Banco do Brasil. A ideia é elevar em 10% a demanda no primeiro ano de campanha e em 15% no segundo. Na oportunidade, o presidente do Sebrae nacional, Paulo Okamotto, informou que a instituição está investindo R$ 16 milhões em 79 projetos relacionados à apicultura em todo o Brasil.
Iniciativas como essa certamente ajudarão a mudar a face do setor, especialmente agora que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em conformidade com o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, passou a exigir dos apicultores a construção de uma “casa do mel”, instalação equipada e edificada de maneira a permitir a boa prática na produção melífera. É uma espécie de salvo-conduto para que o produtor de mel saia da informalidade. Há, porém, um senão: segundo a Apacame, uma instalação dessa natureza não sai por menos de R$ 60 mil, um valor elevado para a maioria dos apicultores, mas, em contrapartida, uma boa deixa para que eles se sintam motivados a aderir ao cooperativismo para, assim, dispor de meios para diluir os custos desse e de outros investimentos.

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