sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um ethos para salvar a Terra, Carta da Terra, Leonardo Boff



Entre os muitos ensaios sobre ética mundial, ressalta por sua abrangência, alcance e beleza aquele proposto pela Carta da Terra. Esta representa a cristalização bem sucedida da nova consciência ecológica e planetária, fundadora de um novo paradigma civilizatório.
A Carta da Terra, cujo surgimento e significado relataremos logo a seguir, parte de uma visão ética integradora e holística. Considera as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça social, conflitos étnicos, paz, democracia, ética e crise espiritual. Ela representa um grito de urgência face as ameaças que pesam sobre a biosfera e o projeto planetário humano e também um libelo em favor da esperança e de um futuro comum da Terra e da Humanidade.
Seus formuladores dizem-no claramente: “A Carta da Terra está concebida como uma declaração de princípios éticos fundamentais e como um roteiro prático de significado duradouro, amplamente compartido por todos os povos. De forma similar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a Carta da Terra será utilizada como um código universal de conduta para guiar os povos e as nações na direção de um futuro sustentável”(La Carta de la Tierra. Valores y principios para un futuro sostenible, Secretaria Internacional del Proyecto Carta de la Tierra, San José, Costa Rica 1999, 12).

a) O processo de elaboração da Carta da Terra
O texto da Carta da Terra madurou durante muitos anos a partir de uma ampla discussão a nivel mundial.
Um nicho de pensamento se encontra no seio da ONU. Criada em l945, se propunha como tarefa fundamental a segurança mundial sustentada por três pólos principais: os direitos humanos, a paz e o desenvolvimento sócio-econômico. Não se fazia ainda nenhuma menção à questão ecológica. Esta irrompeu estrepitosamente em l972 com o Clube de Roma, o primeiro grande balanço sobre a situação da Terra, que denunciava a forma destrutiva dos meios de produção e propunha como terapia limites ao crescimento. Nesse mesmo ano a ONU organizou o primeiro grande encontro mundial sobre o meio-ambiente em Estocolmo na Suécia. Ai surgiu a consciência de que o meio-ambiente deve constituir a preocupação central da humanidade e o contexto concreto de todos os problemas. Inarredavelmente o futuro da Terra e da humanidade depende das condições ambientais e ecológicas propícias à vida. Impõe-se desenvolver valores e propor princípios que garantam um equilíbrio ecológico, capaz de manter e fazer desenvolver a vida.
Em 1982, na sequência desta preocupação ecológica, se publicou a Carta Mundial para a Natureza. Em 1987 a Comissão Mundial para o Meio-Ambiente e o Desenvolvimento (Comissão Brundtland) propunha o motto que continua fazendo fortuna até os dias de hoje, o “desenvolvimento sustentável”. Sugeria, outrossim, uma Carta da Terra que regulasse as relações entre esses dois campos, o meio-ambiente e o desenvolvimento.
Em 1992 por ocasião da Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, foi proposta uma Carta da Terra que havia sido discutida em nivel mundial por organizações não governamentais, por grupos comprometidos e científicos bem como por governos naconais. Ela deveria funcionar como o cimento ético a conferir coerência e unidade a todos os projetos dessa importante reunião. Mas não houve consenso entre os governos seja porque o próprio texto não estava suficientemente maduro, seja porque faltava o suficiente estado de consciência por parte dos participantes da Cúpula da Terra que permitisse acolher uma Carta da Terra. Em seu lugar adotou-se a Declaração do Rio sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento. Tal rejeição provocou grande frustração nos meios mais conscientes e comprometidos com o futuro ecológico da Terra e da Humanidade.
Surgiu, então, o segundo e decisivo nicho de pensamento e criação: duas organizações internacionais não governamentais, a saber, a Cruz Verde Internacional e o Conselho da Terra, com o apoio do governo holandês. Estas duas entidades assumiram o desafio de buscar formas para se chegar a uma Carta da Terra.
Em 1995 copatrocinaram um encontro em Haia na Holanda onde 60 representantes das mais diversas áreas junto com outros interessados criaram a Comissão da Carta da Terra com o propósito de organizar uma consulta mundial durante dois anos ao fim dos quais dever-se-ia chegar a um esboço de Carta da Terra.
Ao mesmo tempo, foram recopilados os princípios e os intrumentos existentes de direito internacional, identificáveis na vasta documentação oficial sobre questões ecológicas. O resultado foi a confecção de um informe com o título “Princípios de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentado: Resumo e Reconhecimento”.
Em 1997 criou-se a Comissão da Carta da Terra composta por 23 personalidades mundiais, oriundas de todos os continentes para acompanhar o processo de consulta e redigir um primeiro esboço do doumento sob a coordenação de Maurice Strong (do Canadá e coordenador geral da Cúpula da Terra, Rio-92) e Mikhail Gorbachev (da Rússia, presidente da Cruz Verde Internacional).
Em março de 1997 durante o Forum Rio+5, a Comissão apresentou um primeiro esboço da Carta da Terra. Os anos de 1998 e 1999 foram de ampla discussão em todos os continentes e em todos os níveis (desde escolas primárias, comunidades de base até centros de pesquisa e ministérios de educação) sobre a Carta da Terra. Cerca de 46 países e mais de cem mil pessoas foram envolvidas. Muitos projetos de Carta da Terra foram propostos. Até que em abril de 1999 sob a orientação de Steven Rockfeller, budista e professor de filosofia da religião e de ética, escreveu-se um segundo esboço de Carta da Terra, reunindo as principais ressonâncias e convergênciais mundiais. De 12-14 de março de 2000 na UNESCO em Paris se incorporaram as últimas contribuições e se ratificou a Carta da Terra.
A partir de agora temos a ver com um texto oficial, aberto a discussões e a novas incorporações até que seja proposto ao endosso da ONU, após ampla discussão. Aprovou-se uma campanha mundial de apoio à Carta da Terra com o propósito de conquistar mais e mais pessoas, instituições e governos à essa nova visão ética e ecológica, capaz de fundar um princípio civilizatório benfazejo para o futuro da Terra e da humanidade. Depois de apresentada e discutida pela Assembléia da ONU – esse é o propósito - terá o mesmo valor que a Carta dos Direitos Humanos, inicialmente, com lei branda, depois como lei de referência mundial, em nome da qual os violadores da dignidade da Terra poderão ser levados à barra dos tribunais. 

b) Princípios e valores éticos da Carta da Terra
O mérito principal da Carta é colocar como eixo articulador a categoria da inter-retro-relação de tudo com tudo. Isso lhe permite sustentar o destino comum da Terra e da humanidade e reafirmar a convicção de que formamos uma grande comunidade terrenal e cósmica. As perspectivas desenvolvidas pelas ciências da Terra, pela nova cosmologia, pela física quântica, pela biologia contemporânea e os pontos mais seguros do paradigma holístico da ecologia subjazem ao texto da Carta.
Ela se divide em quatro partes, um preâmbulo, princípios fundamentals, princípios de apoio e uma conclusão.
O Preâmbulo afirma enfaticamente que a Terra está viva e com a humanidade forma parte de um vasto universo em evolução. Nessa afirmação cuidadosamente formulada, ressoa não só a teoria da Gaia proposta por James Lovelock e outros, mas também a crença ancestral dos povos segundo a qual a Terra é a Grande Mãe, geradora de toda a vida. Hoje esse super-organismo vivo está ameaçado em seu equilíbrio dinâmico devido às formas exploradoras e predatórios do modo de produção dos bens, modo esse mundialmente integrado.
Face a esta situação global, temos o dever sagrado de assegurar a vitalidade, a diversidade, a integridade e a beleza de nossa Casa Comum. Para isso precisamos de refazer uma nova aliança com a Terra e refundar um novo pacto social de responsabilidade entre todos os humanos, radicado numa dimensão espiritual de reverência face ao mistério da existência, de gratidão pelo presente da vida, e de humildade diante do lugar que o ser humano ocupa no conjunto dos seres.

Melhor do que resumir os conteúdos éticos, faríamos bem transcrever os 16 princípios fundantes do novo ethos mundial:

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DE VIDA
- Respeitar a Terra e a vida com toda sua diversidade;
-Cuidar da comunidade de vida com compreensão, compaixão e amor;
-Construir sociedades democráticas, justas, sustentáveis, participatórias e pacíficas;
-Assegurar a riqueza e a beleza da Terra para as gerações presentes e futuras.
II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA
-Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida;
-Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e diante dos limites de nosso conhecimento, impõe-se o caminho da prudência;
-Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário;
-Aprofundar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e uma ampla aplicação do conhecimento adquirido.
III.JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA
-Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social, econômico e ambiental;
-Garantir que as atividades econômicas e instituições em todos os níveis promovam o desenvolvimeto humano de forma eqüitativa e sustentável;
-Afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, ao cuidado da saúde e às oportunidades econômicas;
- Apoiar, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, dando especial atenção aos povos indígenas e minorias.
IV.DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ
-Reforçar as instituições democráticas em todos os niveis e garantir-lhes transparência e credibilidade no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões e no acesso à justiça;
-Integrar na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável;
-Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração;
-Promover uma cultura de tolerância, não-violência e de paz.

A Carta expressa, como efeito final, a confiança na capacidade regenerativa da Terra e na responsabilidade compartida dos seres humanos de aprenderem a amar e a cuidar do Lar comum. Só assim garantiremos um futuro comum e alcançaremos a paz tão ansiada, entendida como “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maor da qual somos parte”. Concluindo podemos dizer: tudo o que precisamos para o atual estado da Terra, encontramos nesta proposta de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se produziu até agora. Se esta Carta da Terra for universalmente assumida mudará o estado de consciência da humanidade. A Terra ganhará, finalmente, centralidade junto com todos os filhos e filhas da Terra que se responsabilizam pelo futuro comum. 

Nela não haverá mais lugar para o empobrecido, o excluido e o agressor da própria Grande Mãe. Mais e mais os seres humanos se entenderão como a própria Terra que em seu lento e progressivo evoluir alcançou o estágio do sentimento, do pensamento, do amor, do cuidado, da compaixão e da veneração.

c)Três pontos relevantes na Carta da Terra
A Carta da Terra contém uma riqueza de conteúdo inestimável, cobrindo, praticamente, todas as áreas de interesse para uma vida harmônica na nave-espacial Terra. Três pontos, entretanto, cabe ressaltar.

O primeiro dele, é a aura benfazeja que cerca todo o documento. Há a consciência da gravidade do estado da Terra e da Humanidade. Mas nem por isso prevalece o abatimento e a resignação. Antes, há lugar para a esperança, há confiança na responsabilidade humana e há a certeza de um novo concerto sinergético e amoroso entre Terra e Humanidade. Deixa-se para trás a visão meramente positivista e mecanicista da natureza. Em seu lugar entra a concepção contemporânea que resgata a perspectiva ancestral que capta o caráter de mistério do universo e da vida. Os valores da solidariedade, da inclusão e da reverência pervadem todo o texto.

O segundo ponto é a superação do conceito fechado de desenvolvimento sustentável. Esta categoria é oficial em todos os documentos internacionais. Foi a fórmula pela qual o sistema mundial imperante conseguiu incorporar as exigências do discurso ecológico. Mas ele é profundamente contraditório em seus próprios termos. Pois, o termo desenvolvimento vem do campo da economia; não de qualquer economia, mas do tipo imperante, que visa a acumulação de bens e serviços de forma crescente e linear mesmo à custa de iniquidade social e depredaçã ecológica. Esse modelo é gerador de desigualdades e desiquilíbrios, inegáveis em todos os campos onde ele é dominante. 
A sustentabilidade provém do campo da ecologia e da biologia. Ela afirma a inclusão de todos no processo de inter-retro-relação que caracteriza todos os seres em ecosistemas. A sustentabilidade afirma o equilíbrio dinâmico que permite todos participarem e se verem incluidos no processo global.
Entendidos assim os termos, vê-se que a expressão “desenvolvimento sustentável” se torna, na prática, inesequível. Os termos se contrapõem e não revelam uma forma nova e alternativa de relação entre produção de bens necessários à vida e à comodidade humana e natureza com seus recursos limitados.
 A Carta da Terra em suas redações iniciais havia incorporado o termo “desenvolvimento sustentável” como eixo estruturador da Carta da Terra. Graças às acaloradas e minuciosas discussões internas, superou-se esta terminologia. Manteve-se a categoria sustentabilidade, como fundamental para o sistema-vida e o sistema-Terra. Mais que buscar um desenvolvimento sustentável, importa construir uma vida sustentável, uma sociedade sustentável e uma Terra sustentável. Garantida essa sustentabilidade básica, pode-se falar com propriedade de desenvolvimento sustentável. É dentro desta compreensão que na Carta da Terra se usa, às vezes, o termo, mas libertado de sua compreensão oficial. 

O terceiro ponto reside na ética do cuidado. Já em 1991 a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) publicaram conjuntamente um dos textos mais articulados e práticos que levava como título programático “Cuidando do Planeta Terra. Uma estratégia para o Futuro da Vida (Caring for the Earth. A Strategy for Sustainable Living)”. O cuidado era a categoria que unia todas as práticas de preservação, regeneração e trato para com a natureza. O cuidado era apresentando como o valor principal de uma ética ecológico-social-espiritual.

Com isso se resgatava o cuidado em seu sentido antropológico e ético como uma relação amorosa para com a realidade, para além dos interesses de uso. O cuidado está ligado aos processos da vida, seja em sua manutenção e reprodução, seja em sua construção social. Pelo cuidado o ser humano pessoal e coletivo supera as desconfianças, os medos e estabelece os fundamentos para uma paz duradoura.
Estas visões perpassam o texto da Carta da Terra e fazem dela uma das expressões éticas e espirituais mais acabadas dos últmos tempos.
Belamente conclui a Carta: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, por um compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça e pela paz, e pela alegre celebração da vida”.

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