domingo, 12 de dezembro de 2010

Estatística da falta de amor

Despoluir o Tietê? Pra quê, se as praias da Floripa imaginária que nos aguarda estão limpas? Esquema de segurança pública? Lá no condomínio em Indaiatuba não tem perigo nenhum

por Rodrigo Leão

O número não sai de minha cabeça: 57% dos paulistanos, se pudessem, mudariam de cidade. Outros dados da pesquisa Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município (Irbem), feita pelo Ibope a pedido da ONG Movimento Nossa São Paulo, foram analisados na última edição da época são paulo, mas quero voltar aos tais 57%. Mesmo trabalhando com publicidade e, portanto, tendo sido vacinado contra as “verdades” que aparecem em pesquisas de opinião, fiquei um pouco chocado. Será que, de cada dez pessoas que eu vejo na fila do cinema, seis estão pensando em picar a mula?

Essa é uma estatística muito constrangedora. Como quando um amigo avisa a você que vai terminar com a namorada antes de contar a ela. E você se pega jantando com eles, olhando pra ela com pesar e pensando “pode pedir o filé com alho, tonta, ele vai largar você mesmo...”. Afinal, se toda essa gente está esperando a primeira oportunidade pra zarpar, que tipo de relação estaríamos construindo com nossa cidade? E, pior ainda, que cidade vai emergir dessa relação?

Meu trabalho consiste basicamente em fazer você achar um sabonete mais legal do que o outro. E pode parecer estranho, mas o segredo não está no sabonete, mas em você. Afinal, sabonetes são objetos inanimados cujo valor só existe quando enxergado por alguém. O trabalho do publicitário é abrir seus olhos para a riqueza que já existe em você e que o torna capaz de criar valores como lealdade e fidelidade até mesmo com um sabonete. Ou seja, é da beleza que já existe em você que nasce a beleza das coisas ao seu redor. É da riqueza que você empresta que nasce a riqueza do mundo. E com uma cidade não é diferente. É do amor que existe em seus cidadãos que nascem os motivos para amá-la.

No ano passado estive em Berlim, na Alemanha, onde me apaixonei pelas faixas exclusivas para ônibus, táxis e bicicletas. Quem mora em Berlim dá valor à ecologia, à simplicidade e a sua própria saúde. E você percebe isso só de olhar para a cidade. A faixa de bicicletas reflete aquelas pessoas que se organizaram para tê-la.

E o Rio de Janeiro, então? Uma cidade com uma guerra urbana conflagrada, mas que, movida pela inquebrantável autoestima de seus moradores, conquista o direito de sediar a próxima Olimpíada. Os cariocas querem ver a beleza que o Rio teve um dia e que só restou dentro deles. E, aos poucos, estão conseguindo.

E o que nós vamos conseguir se 57% dos paulistanos acham que a saída para os problemas da cidade é o aeroporto? Despoluir o Tietê? Pra quê, se as praias da Floripa imaginária que nos aguarda estão limpas? Melhorar o transporte público? Ora, o da Curitiba onírica pra onde vamos já funciona. Já sei! Desenvolver um esquema de segurança pública que funcione? Nããão... Lá no condomínio em Indaiatuba pra onde a gente vai mudar não tem perigo nenhum. Nos envolver na educação de nossos filhos, cuidando nós mesmos das escolas públicas? Nada disso. Vamos todos pra Orlando vestindo orelhas de Mickey.

Uma vez, vi uma palestra do Jaime Lerner, o urbanista e prefeito que pôs Curitiba no mapa. Ele pediu que alguém desenhasse um mapa de São Paulo na lousa. Ninguém se ofereceu. Aí ele perguntou: “Como é que a gente pode amar alguma coisa ou cuidar dela se nem sabemos como ela se parece?” E hoje eu pergunto: como é que a gente pode esperar algo de bom de uma cidade quando o que a maioria quer dela é apenas distância?



fonte:  revista epoca

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